3 – Alguns comentários sobre as partes 1 e 2 anteriores: ainda a autoria

Autoria não é presente, como já se ressaltou aqui anteriormente. Somos responsáveis pelo que assinamos.  Autoria também não é uma cortesia a se fazer com colegas, amigos, parentes. Menos ainda se for uma cortesia-surpresinha, da qual o agraciado não é avisado, como parece ter acontecido em dois dos trabalhos retratados do Dr. Reuben.

Quem assina um trabalho tem de “estar ciente de como os resultados foram apresentados e estar disposto a defender o manuscrito final“, afirmam Padula, Somerville & Mudrak, 2018. Resumem, desse modo, o quarto e último dos critérios de autoria estabelecidos pelo  International Committee of Medical Journals Editors (ICMJE) que têm de ser satisfeitos por cada autor,  a saber:

  • Contribuições substanciais para a concepção e planejamento do trabalho, ou a aquisição, análise ou interpretação de dados para o trabalho;  E
  • Redação prévia ou revisão crítica no que respeita ao conteúdo intelectual; E
  • Aprovação final da versão a ser publicada;  E
  • Concordância em poder prestar contas de todos os aspectos do trabalho, assegurando que questões relativas à precisão e integridade de qualquer parte do trabalho sejam apropriadamente investigadas e resolvidas.
Mas tenho de responder pelo que não fiz no trabalho? 
Essa parte nem é minha área!
No famoso caso Imanishi-Kari, David Baltimore, um dos autores 
e,já na época, Prêmio Nobel, assim se referiu aos dados
do artigo da Cell: 
"It was the kind of work I didn't know how to do, 
had never done, 
and I had collaborated with Imanishi-Kari 
for that reason" (Kleves, 1996: 99)

O comentário de Baltimore vai ao encontro da crítica de que o quarto critério do ICMJE  não é razoável ou viável para todos os membros de uma equipe:

For example, many undergraduate researchers do not have the authority or expertise to handle the associated responsibilities contained with ICMJE’s criterion. Along these lines, postdoctoral fellows are often at the mercy of a lab director in terms of their professional future and do not always have robust support systems in place to protect them from reprisal if they seek to uphold the “accuracy or integrity” of a project. [….] The power differential between junior and seniors researchers is hard to ignore. Furthermore, one collaborator may effectively have no way of knowing how another’s data were obtained or what they fully mean. For example, a biochemist collaborating with an X-ray crystallographer or an electron microscopist might not be able to, or struggle to, appreciate the field-specific nuances of the other person’s work. (Borenstein &  Shamoo, 2015: 274)

Caso se leve em conta quem tomou parte da redação do texto em algum momento, de novo  vem a pergunta: como ficam trabalhos com equipes multidisciplinares,  de diferentes centros (parte deles não nativos da língua em que saíra a publicação)?  E se o número de autores chegar aos milhares, se forem mais de 5000 autores,  por exemplo, como no trabalho sobre o bóson de Higgs de 2015? Ou mesmo 20?  Que contribuições num projeto qualificam alguém como autor de um trabalho?

A complexidade do problema vem promovendo a proposta, pelo menos desde 2012, de que se deixe claro o tipo de contribuição de cada um, caso da  taxonomia CRediT.

As áreas têm culturas diferentes. Um exemplo.

No começo dos anos 1990, passeando pela seção de painéis de um encontro de física, chamou a minha atenção um trabalho sobre estatística de distribuição de níveis de energia em um cristal. [….]  Perguntei ao colega que estava apresentando o painel sobre essa estatística e a resposta foi que ele fizera os cálculos dos níveis de energia, não sabia interpretá-los e quem poderia responder a minha pergunta era o outro autor, que não estava presente. [….] Na época o desconforto que a questão suscitou foi aplacado pela lembrança de uma prática internalizada na comunidade científica a qual pertencia. Experimentos importantes são realizados por diferentes grupos utilizando amostras sofisticadas obtidas em poucos laboratórios. O uso dessas amostras configura um tipo de colaboração comum e os artigos resultantes dessas colaborações sempre têm o produtor das amostras como autor. Faz parte do paradigma da comunidade a percepção clara da função específica daquele autor na lista de autores.  A autoridade dele é sobre a amostra e não sobre a pesquisa resultante em si. (Schulz, 2017)


Referências

Borenstein, Jason &  Shamoo, Adil E. 2015.  Rethinking Authorship in the Era of Collaborative Research, Accountability in Research, 22: 267-283. http://nursing.msu.edu/research/Resources%20for%20Researchers/Reccomended%20Reading%20Articles/Rethinking%20authorship%20in%20the%20era%20of%20collaborative%20research.pdf

Castelvecchi, Davide. 2015. Physics paper sets record with more than 5,000 authors. Nature News. https://www.nature.com/news/physics-paper-sets-record-with-more-than-5-000-authors-1.17567#/b1

Harvard University and the Wellcome Trust. 2012. Report on the International Workshop on Contributorship and Scholarly Attribution, IWCSA Report .   http://projects.iq.harvard.edu/files/attribution_workshop/files/iwcsa_report_final_18sept12.pdf

Kleves, Daniel J. 1996. The assault on David Baltimore. The New Yorker, 27Maio1996.  http://web.mit.edu/chemistryrcr/Downloads/Baltimore.pdf

Padula, Danielle, Somerville, Theresa & Mudrak, Ben. 2018. Todos os periódicos devem ter uma política que defina a autoria – aqui está o que incluir [Publicado originalmente no blog LSE Impact of Social Sciences em Janeiro/2018] [online]. SciELO em Perspectiva, 2018.  https://blog.scielo.org/blog/2018/08/31/todos-os-periodicos-devem-ter-uma-politica-que-defina-a-autoria/

Schulz, Peter. 2017. Já não se fazem mais autores como antigamente. Jornal da Unicamp. 17Out2017. https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/ja-nao-se-fazem-mais-autores-como-antigamente

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