Uma pandemia de 100 anos atrás: decisões de então sobre o ano escolar



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Não foi só a quantidade de mortos que causou espanto, mas também a quantidade de pessoas acometidas pela influenza, e o medo de contrair a doença. Tudo isso desorganizou o comércio e os serviços públicos da capital federal. A cidade se viu impossibilitada de funcionar como centro administrativo do país e dar encaminhamento à vida coletiva. As repartições públicas fecharam devido à falta de funcionários suficientes para seu funcionamento regular. Os colégios suspenderam as aulas por tempo indeterminado, numa tentativa de se evitar aglomerações que facilitassem a transmissão da peste. As aprovações do ano letivo de 1918 foram concedidas aos alunos por meio de simples requerimento e pagamento de taxas, de acordo com decreto governamental.”

(Goulart, 2003: 56-57)

Esse é um trecho da dissertação de Adriana da Costa Goulart, defendida em 2003 na Universidade Federal Fluminense/ UFF. Faz referência à influenza conhecida como Gripe Espanhola, que começou a grassar no Nordeste do Brasil entre final de agosto e início de setembro de 1918, chegando ao Rio em meados desse mes de setembro (Goulart, 2003: 15) ou mesmo antes, quando se constatara a ocorrência de um resfriado coletivo — o  limpa-velhos — que matava preferencialmente idosos, diferentemente do quadro que se instalaria nos meses seguintes. A situação era apresentada pelo discurso oficial como distinta daquela no noticiário que chegava da Europa (Goulart, 2003: 32) e  “negava categoricamente” que se tratava da mesma epidemia ( Farias, 2008: 48).

A Gripe Espanhola ganharia relevo na história pelo número de mortos no mundo: algumas estimativas falam em 50 milhões e até mesmo 100 milhões de óbitos. No Rio de Janeiro, a então a capital federal que em setembro de 1918 tinha 910.710 habitantes, a pandemia faria entre 11.890 e 14.279 mortes entre setembro e a primeira quinzena de novembro (Goulart, 2003: 23). Nos últimos dias de outubro de 1918, o Rio de Janeiro alcançava a média de cerca de 732 mortos por dia (Goulart, 2003: 53).

A Gripe Espanhola surgia num mundo impactado por uma guerra mundial, que conhecia as vacinas contra varíola e raiva, que ainda demoraria para  desenvolver antibióticos e outras drogas, que ainda não deixara de lado por completo a ideia de miasmas. Nesse contexto em que faltavam meios de prevenção e de cuidado efetivo, as fórmulas milagrosas ganharam espaço, e incluíram de limão a naftalina, ou mesmo tabaco, como ilustra o anúncio publicado no jornal A Platea em 23 de outubro de 1918 (em Duarte, 2009: 65):

Gripe Espanhola - Jornal A Plateia

Não era essa, certamente a recomendação médica:

Gripe Espanhola -recomendações (3)
Correio Paulistano, 31Out1918, p. 3 (Acervo: Arquivo Público do Estado de São Paulo)

“Seguindo instruções dos médicos do governo, as compras de várias famílias passaram a ser realizadas por uma única pessoa, para diminuir a probabilidade de contato/contágio. Os ‘gelados’ foram vedados. Medidas consideradas preventivas, como evitar apertos de mão, abraços ou beijos, foram insistentemente divulgadas. Para diminuir ainda mais o número de aglomerações, missas, cultos e demais reuniões de caráter religioso foram drasticamente reduzidos. Teatros e cinematógrafos cerraram suas portas. Todas as reuniões noturnas foram especialmente condenadas: a diferença de temperatura, dentro e fora desses locais, já favoráveis à propagação da doença, poderia ser fatal para as pessoas e, assim, para a difusão da gripe espanhola (id. ibid.)”. (Bertucci-Martins, 2005)

As recomendações podiam ganhar desdobramentos imprevistos: uma importadora de automóveis da fábrica norte-americanos Chandler, na rua do Passeio, no Rio de Janeiro, defendia como medida de prevenção a compra de um carro, uma vez que nada pior para a contaminação que o transporte público   (O Paiz, em Westin, 2018):

Gripe Espanhola - importar carro

Nem anulação do ano acadêmico, nem reajuste do calendário

Em meio a uma pandemia que não pouparia o alto escalão do governo — o presidente da república eleito Rodrigues Alves, por exemplo,  morreria no início de janeiro de 1919 — a suspensão das aulas levava à discussão sobre o que aconteceria com as atividades escolares.

A epidemia não afetou todo o país ao mesmo tempo. Damacena Neto (2011: 66), com o foco na Cidade de Goiás, mostra que lá a suspensão das aulas se deu em 6 de novembro de 2018, retomadas as aulas apenas em 18 de março do ano seguinte de 1919, ou oito meses depois dos primeiros casos registrados no Rio de Janeiro.

No Rio de Janeiro e em São Paulo, por exemplo, a Gripe Espanhola afetara significativamente o final do ano letivo. O Senador Paulo de Frontin (1860-1933), também catedrático de Ciências Físicas e Matemáticas da Escola Politécnica (atual Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro), defendia a aprovação automática de todos os alunos, porque

O momento em que se exige do estudante o máximo esforço são os últimos três meses do ano letivo, quando ele se prepara para o exame final. Exatamente nessa época, grande parte dos alunos foi atacada pela epidemia reinante e muitos falecerem. Na Escola Politécnica, choramos a perda de mais de um. Aqueles que se salvaram estão em uma convalescença que se pode considerar longe de ser completa. (apud Westin, 2018)

Isso se concretizaria com Decreto Nº 3.603, de 11 de dezembro de 1918, que declarava

promovidos ao anno ou série immediatamente superior áquelle em que estiverem matriculados todos os alumnos das escolas superiores ou faculdades officiaes, Collegio Pedro II e militares, bem assim dos estabelecimentos de ensino equiparados ou sujeitos a fiscalização”.

O Decreto terminava estabelecendo que

Art. 6º Os alumnos beneficiados pela presente lei não ficam isentos do pagamento da taxas de matricula, de frequencia e de exame 

A divulgação do decreto lançou mão dos jornais para alcançar centros distantes do Rio de Janeiro, como São Luís do Maranhão, por exemplo: em 17 de dezembro, O Jornal dava conta, numa pequena coluna em meio à página 4, com o título Instrução Pública, da urgência na execução do decreto.


REFERÊNCIAS

Arquivo Público do Estado de São Paulo. Repositório Digital. Correio Paulistano, 31Out2018. http://200.144.6.120/uploads/acervo/periodicos/jornais/BR_APESP_CPNO_19181031.pdf

Bertucci-Martins, Liane Maria. 2005. Entre doutores e para os leigos: fragmentos do discurso médico na influenza de 1918. Históri Ciência Saúde-Manguinhos, 12 (1). Jan./Apr. 2005. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702005000100007

Biblioteca Nacional Digital do Brasil. Hemeroteca Digital Brasileira. O Jornal (MA), 17Dez1918.http://memoria.bn.br/pdf/720593/per720593_1918_01243.pdf

Damacena Neto, Leandro Carvalho. 2011. A “Influenza Espanhola”  de 1918/1919 na Cidade de Goiás. Goiânia: Universidade Federal de Goiás. Dissertação de Mestrado em História. https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/113/o/LEANDRO_CARVALHO_DAMACENA_NETO.pdf

Duarte, Ivomar Gomes. 2009. O Código Sanitário Estadual de 1918 e a Epidemia de
Gripe Espanhola.  Cadernos de História da Ciência , 5: 55-73. https://bibliotecadigital.butantan.gov.br/arquivos/28/PDF/v5n1a04.pdf

Farias, Eduardo Alexandre de. 2008. Jornalismo à espanhola: um olhar sobre o noticiário recifense da epidemia de gripe de 1918. Recife: Universidade Federal de Pernambuco. Dissertação de Mestrado em Comunicação.  https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/2931/1/arquivo1869_1.pdf

Goulart, Adriana da Costa. 2003. Um cenário mefistofélico:  gripe espanhola no Rio de Janeiro. Niterói: UFF. Dissertação de Mestrado em História. https://www.historia.uff.br/academico/media/aluno/417/projeto/Dissert-adriana-da-costa-goulart.pdf

Westin, Ricardo. 2018. Há 100 anos, gripe espanhola devastou país e matou presidente. Arquivo S , 49, 3Set2018. Senado Notícias. https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/ha-100-anos-gripe-espanhola-devastou-pais-e-matou-presidente


Há tantos anos trabalhando com as turmas de calouros — isto é, alunos recém-saídos do Ensino Médio, iniciantes em linguística e na universidade —, decidi produzir e reunir pequenos textos que pudessem vir a aumentar o interesse desses jovens por linguística. Meu objetivo é, de um lado,  demonstrar que nosso trabalho é bem mais interessante do que a ideia generalizada de que apenas procuramos (ou deveríamos procurar) onde estão os erros numa frase — isto é, demonstrar que nosso trabalho não é (nem deveria ser) o reforço  para  o reducionismo de um mundo intolerante com a variação linguística; de outro,  aproveitar as expectativas positivas  em relação ao curso escolhido que se inicia. É essa a ideia do Meu Magazine de Linguística. Todos os textos estão reunidos em https://linguisticamcarlotarosa.wordpress.com/meu-magazine-de-linguistica/ .



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2 comentários sobre “Uma pandemia de 100 anos atrás: decisões de então sobre o ano escolar

  1. oi, Carlota. meu pai falava demais sobre a ‘gripe espanhola’. ele enaltecia a homeopatia que , então, teria ajudado muito na epidemia para aumentar a imunidade das pessoas. excelente trabalho seu de divulgação. beijocas. cecilia 

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    1. Oi, Cecília: As fotos do Rio de Janeiro na época são impressionantes, porque sem rabecão em número suficiente, as famílias começaram a jogar os corpos na rua. Junte ratos, urubus e moscas. E foto não tem cheiro.

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