Recebi emails de uma revista internacional desconhecida interessada em que eu dê pareceres para artigos

 

Há um tipo de spam que se concretiza como uma mensagem lisonjeadora a nosso trabalho e nos convida a publicar numa revista de que nunca se ouviu falar, apesar de alardear um fator de impacto extremamente alto. A publicação quase imediata se faz mediante pagamento de taxas que a mensagem (ou o site do grupo editorial) faz questão de frisar que estão abaixo dos preços de mercado (comentado em Recebi emails de uma revista internacional interessada em publicar minha pesquisa/)

Esse tipo de caça-níqueis dirigido especificamente a autores acadêmicos vem-se expandindo: aos spams com um convite para publicar num determinado periódico  há  também aqueles que convidam para atuar como  parecerista. Se o filtro de endereços não foi muito bom, podemos  receber uma solicitação de parecer para um trabalho em área muito diferente da nossa, como no exemplo a seguir.

Peer review convite 2

Fosse o convite feito para analisar um texto de nossa área, como decidir?

Bom, há detalhes a considerar em mensagens desse tipo.

  • Uma consulta ao DOAJ/Directory of Open Access Journals retorna o nome da revista? (Mas podia ser uma revista recém-criada, por exemplo).
  • O nome do grupo editorial dessa publicação já aparecia na antiga lista de Beall ? (Mas a lista foi alvo de críticas).
  • Talvez o mais importante: um passeio pelo site do periódico, porque ele nos dá  ideia do que foi publicado: os textos têm qualidade? Os prazos decorridos entre o recebimento do manuscrito e sua publicação contam-se em dias apenas?  Enfatiza a cobrança de taxas abaixo das cobradas no mercado?

O convite para parecer tinha interesse de fato num parecer?

Vamos ao exemplo acima. Foi possível rastrear o trabalho mencionado no convite e constatar que entre a data de recebimento do artigo pelos editores, avaliação e publicação na internet  correram apenas 23 dias e £999 (em torno de 5 mil reais no câmbio de hoje); entre o email acima e o final do processo, 11 dias.  

Respondo a uma mensagem como essa? (Ou : devo responder a um spammer tão amável?)

Não.

Um desdobramento indesejável

Conseguir nomes que aceitem ser associados a uma revista predatória ajuda a revestir de respeitabilidade um negócio eticamente discutível. Mas para quem permitiu (ou pior: nem permitiu) ter seu nome associado a um desses periódicos o cenário muda.

Laine & Winker (2017), em artigo no site da WAME/ World Association of Medical Editors, propunham que “Ideally, academic institutions should also identify academics who are listed as editors or Editorial Board members for journals established as predatory, and require that their affiliation with the institution is removed”. 

É uma proposta apenas. Mas ilustra o dano à reputação que pode trazer.


Laine, Christine & Winker Margaret A. Identifying Predatory or Pseudo-Journals. World Association of Medical Editors. February 15, 2017. http://wame.org/identifying-predatory-or-pseudo-journals


Livro adicionado: “Escrita acadêmica: primeiros passos”, de Maria Carlota Rosa

Escrita acadêmica: primeiros passos está em acesso aberto no link abaixo, na aba Sobre neste site e no Pantheon – Repositório Institucional da UFRJ. Voltado especialmente para os pós-graduandos do Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFRJ, pode servir de orientação a outros alunos no processo de se tornarem autores acadêmicos.

O livro se compõe de três partes. A primeira parte tem como suporte a macro-organização dos maiores desafios do início do percurso acadêmico:  a dissertação de mestrado e a tese de doutorado, mas também a monografia de final de curso de graduação.

Feito o trabalho, a pergunta: onde publicar? É o tema da segunda parte.

A terceira parte trata de um problema crescente: a publicação que compromete o currículo.


ROSA, Maria Carlota. 2018. Escrita acadêmica: primeiros passos. Rio de Janeiro: M.C.A.P.Rosa. ISBN: 9788592237226


1 – Recebi emails de uma revista internacional interessada em publicar minha pesquisa

É muito agradável ouvir de alguém que há interesse na pesquisa que conduzimos, mais ainda quando embalado num afago ao ego:

“We take immense pleasure in inviting an eminent person like you to contribute your esteemed article for our journal. You can submit either Editorial, short communication, Image Article or Research article which falls under the scope of our journal

Mas o interesse é real? Algumas  mensagens evidenciam que nosso endereço foi obtido em alguma varredura na internet que compôs uma massa de endereços. Os endereços nessa lista serão alvo de determinada mensagem com fins comerciais.

Não se trata de uma mensagem individualizada para aquele destinatário específico, mas spam, e se a varredura  teve problemas de filtro, recebemos convites  que demonstram interesse por aquilo que não fazemos, caso do elogio acima:  Microbiologia e Bioquímica. Ou do exemplo  a seguir, que me informava do interesse da revista por meus trabalhos em  … Patologia.

JofPathology3

Em geral nas mensagens não se fala em pagamento.  Mas basta uma visita ao site da revista ou grupo editorial.

No caso do grupo responsável não só pela publicação que originou a mensagem acima, mas também por mais cerca de 200 outros títulos  chama-se a atenção dos potenciais autores para o fato de que o grupo editorial cobra taxas abaixo da média (“Please note that XXXX’s regular APC are well below average“), a saber, neste caso, US$699 — e que não cobram taxa de submissão.

Só é esquisito se o convite não é da minha área?
Se fosse da minha área tudo bem? NÃO, continuava sendo esquisito.
É spam.

Mensagens não solicitadas, enviadas por periódicos de que ninguém ouviu falar, que nos pedem o envio de trabalhos  (“Dear Dr. RosaAn invitation to submit to XXX Malaria) devem ser olhadas com desconfiança. Devem alertar o pesquisador para o fato de que no mercado editorial de periódicos científicos há empresas que tiram partido da necessidade do pesquisador de alcançar um quantitativo anual de publicações, vendendo facilidades para a consecução desse objetivo. É o lado obscuro da via dourada do acesso aberto.

Receber um email informativo sobre um número de revista 
ou um congresso de uma sociedade científica 
de que somos membros é outra história.

Os chamados periódicos científicos predatórios são revistas em geral com um título pomposo, preferencialmente em inglês, mas sempre com padrões de aceitação baixos: basicamente, o pagamento de taxas (de submissão,  APC, fast track…), isto é, o pagamento é a condição para a publicação, não obstante as afirmações acerca de processos rigorosos de avaliação por pares. Em geral alardeiam um fator de impacto alto, que não se sabe como foi calculado (mas vamos lá: se o FI leva em conta as citações, como nunca ouvimos falar de trabalhos da nossa área numa dessas publicações que têm FIs tão altos?)

As taxas cobradas do autor podem ir além da APC (do ing. article processing charge).
É possível incluir uma taxa de urgência, a Fast Track Fee.

"The Fast-Track process guarantees an editorial decision within  14 days". 

"If you choose “Fast-Track” for your manuscript for the first time, the submission fee is €900. 
For a resubmitted “Fast-Track”-manuscript the submission fee is €500".

Mas se o caso é de pressa na divulgação não seria o caso de se pensar num preprint, que é grátis?

Periódicos como os dos exemplos vistos até aqui são a fonte principal de anedotas que circulam no mundo acadêmico sobre publicações.

Um exemplo estapafúrdio de baixos padrões

Get me off your fucking mailing list , de David Mazières (NYU) e Eddie Kohler (UCLA), foi uma brincadeira que circulou há cerca 13 anos: tem a formatação de um artigo científico mas nada mais é que a mesma frase do título repetida ao longo de 10 páginas, em texto corrido e em gráficos.

Em 2014, um pesquisador da Austrália, para dar um basta aos spams enviados por um certo International Journal of Advanced Computer Technology, encaminhou esse texto para a tal revista. E o texto foi aceito. Aparentemente ninguém da revista achou nada de estranho no título nem passou os olhos pelo conteúdo. A aceitação veio acompanhada do pedido de pagamento de 150 dólares, que não foi feito. O trabalho não foi publicado.

Quem gostaria de ter seu trabalho ligado a uma publicação envolvida num incidente relatado em veículos diferentes, como jornais e a Wikipedia?

Referências

“Get Me Off Your Fucking Mailing List” is an actual science paper accepted by a journal. Vox,   https://www.vox.com/2014/11/21/7259207/scientific-paper-scam

Wikipedia contributors.  Article processing charge. In Wikipedia, The Free Encyclopedia. Retrieved 21:27, September 29, 2018,  https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Article_processing_charge&oldid=859387122

Wikipedia contributors. International Journal of Advanced Computer Technology. In Wikipedia, The Free Encyclopedia. Retrieved 01:12, September 20, 2018  https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=International_Journal_of_Advanced_Computer_Technology&oldid=851475679

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