Adendo a “Para começar o semestre, uma historinha”

Imagem: assinatura de João de Barros. Fonte: Wikipedia https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_de_Barros#/media/Ficheiro:Assinatura_Jo%C3%A3o_de_Barros.svg

A Gramática da língua portuguesa, de João de Barros (1496-1570), cuja portada aponta 1540 como a data de publicação — a segunda gramática do português — ainda menciona Nicóstrata ao tratar da definição de letra. Para Barros, Nicóstrata não teria criado todas as letras do alfabeto latino, mas 17. Reproduzimos essa seção da gramática de João de Barros a seguir (Barros, 1540: a4-a4v):


Referências

Barros, João. Grammatica da lingua Portuguesa. Lisboa: Luis Rodriguez, 1540 [Olyssipone : apud Lodouicum Rotorigiu[m], Typographum, 1540]. https://purl.pt/12148/6/res-5658-1-p_PDF/res-5658-1-p_PDF_24-C-R0150/res-5658-1-p_0000_capa-60v_t24-C-R0150.pdf

Relacionados


Sobre línguas de herança (atualização)

Acrescentando uma informação à postagem da segunda-feira, 19 de junho passado, sobre línguas de herança (em https://linguisticamcarlotarosa.wordpress.com/2023/06/26/lingua-de-heranca/ ).

A Prof. Maria Cecília Mollica — a quem agradeço — lembrou-me de uma publicação da AILP/ Associação Internacional de Linguística do Português, em acesso aberto, sobre línguas de herança. A publicação (e outras) pode ser consultada no site da AILP (https://ailp.wordpress.com/) — e baixada de lá — mais especificamente em https://www.dialogarts.uerj.br/arquivos/colecoes_ailp/a_casa_o_sapo_e_o_bau.pdf .

CARVALHINHOS, Patricia; LIMA-HERNANDES, Maria Célia (Orgs.).  A Casa, o sapo e o baú: português como língua de herança.  – Coleção AILP. Vol. 4 – Rio de Janeiro: Dialogarts, 2019.


Passo a passo para inserir no Lattes as citações em bases a que se tem acesso pelo CAFe

Tentei deixar mais claro o caminho para o acesso a bases que são pagas criando um tutorial com as imagens das telas que se sucedem nesse desanimador Acesso CAFe: https://linguisticamcarlotarosa.wordpress.com/wp-content/uploads/2023/01/acesso-cafe.pdf .


Atualização? “Um encontro inesperado com Marcial”

NOTA: "Epigrama" é feminino, segundo o Aurélio, mas não me habituo.
No VOLP é
masculino. Temos agora duas versões da postagem,
cada uma com um gênero. Continuarei com o masculino.

Lendo sobre plágio encontrei várias referências ao poeta latino Marcial (Marcus Valerius Martialis, ? 38-104) como o autor da atestação mais antiga conhecida para plagiador com significado próximo ao atual.Esse emprego estaria nas Epigramas de Marcial, mais exatamente em I.52.

Até então, para mim, que não fui aluna de Português-Latim, Marcial era o autor a quem se atribuía uma expressão latina em grandes relógios de rua, para lembrar o peso da passagem do tempo (“Pereunt et imputantur“, algo como ‘passam e são contadas’), mas também de pequenos poemas que nos ensinaram palavrões em latim.

Um exemplo: Epigramas, VI.36
MENTULA tam magna est, tantus tibi, Papyle, nasus,
ut possis, quotiens arrigis, olfacere.

É interessante observar que a edição bilíngue latim-inglês no Archive.org traz esse epigrama, por exemplo, como vários outros considerados obscenos, traduzido não para o inglês, mas para o italiano.

Recentemente foi publicada uma edição bilíngue para o português que procurou adequar a tradução ao vocabulário empregado em latim (Marco Valério Marcial. Epigramas. Tradução, notas e posfácio de Rodrigo Garcia Lopes. Cotia, Ateliê Editorial, 2017), comentada no Jornal da USP pelo Prof. Carlos Zeron.

Plágio e plagiador em latim

Os dicionários de latim apontam um significado bem distante do que imaginaríamos para plágio e para plagiador. A palavra plágio tem origem no latim plagium, ‘apropriação de escravos alheios’ (Corominas, 1983); plagiarius e plagiator referiam ‘aquele que rouba escravos alheios’ ou ainda ‘aquele que compra ou vende uma pessoa livre’ (Torrinha, 1942).

Em I.52 Marcial se queixa de alguém que roubara a liberdade a seus versos, que ele já libertara. O que se poderia fazer? Lançar a vergonha sobre o plagiador: “hoc si terque quaterque clamitaris, inpones plagiario pudorem“. Para a compreensão dessa imagem de plagiador, que insere a propriedade intelectual na sociedade romana, difícil para um leitor atual, recomendo Biagioli (2014).

Referências

BIAGIOLI, Mario. 2014. Plagiarism, Kinship and Slavery. Theory, Culture & Society, 31(2-3): 65-91.

COROMINAS, Joan. 1983. Breve diccionario etimológico de la lengua castellana. Madrid: Gredos.

MARTIAL. Epigrams, with an English translation by Walter C. A. Ker.  London: William Heinemann; New York: G. P. Putnam’s Sons. 1919. p. 62-63. https://archive.org/details/martialepigrams01martiala/page/n5/mode/2up

TORRINHA, Francisco. 1942. Dicionário latino-português. Porto: Marânus.

ZERON, Carlos. 2018. Epigramas de Marcial: língua ferina e erotismo. Jornal da USP, 27/08/2018. https://jornal.usp.br/artigos/epigramas-de-marcial-lingua-ferina-e-erotismo/


Volta o uso obrigatório de máscaras na UFRJ

A obrigatoriedade tem início hoje.

Ofício nº 557/2022 – GR/CHGAB
Rio de Janeiro, 23 de novembro de 2022.
Aos Dirigentes da UFRJ
Assunto: Uso de máscara

  1. Tendo em vista os indicadores epidemológicos divulgados pelas
    Secretarias de Saúde Estadual e Municipal, e pelo monitoramento que vem
    sendo realizado pelo NEEDIER/UFRJ, determinamos o uso obrigatório de
    máscara nas dependências da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
    conforme disposto artigo 4º, inciso II e § 1º da Portaria nº 117 de 1º de abril de
    2022.
  2. Solicitamos ampla divulgação junto à comunidade acadêmica.
    Atenciosamente,
    Denise Pires de Carvalho
    Reitora

Para uma memória dos tempos de pandemia na UFRJ, ver https://labhislingufrj.wordpress.com/a-letras-e-tempos-de-covid-19/


Volta do uso de máscaras em razão do aumento do número de casos de covid-19 na UFRJ

A Direção da Faculdade de Letras solicitou neste sábado, 5 de novembro de 2022, o atendimento à Nota Técnica do CTD-Covid-19/NEEDIER no tocante à volta ao uso de máscaras e aos protocolos para os que testarem positivo ou que tenham contato com quem tenha testado positivo.

A seguir, a nota.


Para uma memória dos tempos de pandemia na UFRJ, ver https://labhislingufrj.wordpress.com/a-letras-e-tempos-de-covid-19/


Errata

O Prof. Jorge Viana de Moraes (USP) chamou minha atenção para a data do Parecer 283/1962: dia 19 de outubro de 1962 e não, de 2022. Agradeço a correção. Assim, a primeira frase, corrigida, é:

Há 60 anos, no dia 19 de outubro de 1962, era aprovado o Parecer 283/ 1962


Uma ferramenta para o estudo das línguas do mundo: o Glottolog

Atualizado em 28Fev2023

Para pesquisa sobre línguas, em especial as menos conhecidas, a base de dados Glottolog, mantida pelo Max Planck Institute, vem somar-se ao mais antigo Ethnologue, do SIL.

As diferenças entre esses catálogos foram resumidas num artigo da Wikipedia: https://en.wikipedia.org/wiki/Glottolog

Hammarström, Harald & Forkel, Robert & Haspelmath, Martin & Bank, Sebastian. 2022.
Glottolog 4.7.
Leipzig: Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology.

Está disponível — e é gratuito — em http://glottolog.org,


2022: A pandemia não acabou e ainda mata um avião por dia no Brasil.

“Uma viagem com a linguística” também na Amazon, também com custo zero

Já está disponível na Amazon a versão para kindle. Nessa versão todos os links embebidos são facilmente percebidos.

O livro é uma obra com acesso aberto; pode ser baixado gratuitamente:


“Viagem com a linguística: um panorama para iniciantes” já pode ser baixado do Pantheon, o repositório da UFRJ

Graças à eficiência do SIBi-UFRJ meu manual de linguística já está disponível no repositório institucional da UFRJ tanto em pdf como em epub, tendo agora um link permanente.

Para acesso:

http://hdl.handle.net/11422/18668

Maria Carlota Rosa


Novo livro, em acesso aberto (atualização)

Acaba de sair meu livro de introdução à linguística “Uma viagem com a linguística: um panorama para iniciantes”.

A edição em pdf pode ser baixado deste site, na aba “Sobre” https://linguisticamcarlotarosa.wordpress.com/sobre-2/ sem qualquer custo porque está em acesso aberto. A edição digital permite o acesso a diversos links que foram adicionados ao texto.

A edição em ePub pode ser baixada de https://www.parabolaeditorial.com.br/Custom.asp?IDLoja=34487&arq=ebook.htm

A edição teve a chancela do Departamento de Linguística e Filologia, em que trabalho, e da AILP/Associação Internacional de Linguística do Português, a que sou associada. Ambos autorizaram a colocação de seu logo na capa.

Em breve também estará disponível no Kindle da Amazon a custo zero para os leitores.


Rosa, Maria Carlota. Uma viagem com a linguística [recurso eletrônico] : um panorama para iniciantes
/ Maria Carlota Rosa. – 1. ed. – São Paulo : Pá de Palavra, 2022. recurso digital ; 4 MB
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions Modo de acesso: world wide web
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7934-267-7 (recurso eletrônico)



2022: Ainda em pandemia.

E falando em nomes: os gatos conseguem reconhecer os deles

De todas as espécies de gatos, a do chamado gato doméstico, Felis catus, é a única que não está ameaçada: estima-se a existência de cerca de 600 milhões deles pelo mundo (Ledford, 2017). Sua convivência com humanos é atestada desde a Antiguidade. Recentemente, em 2007-2008 — isto é, antes da pandemia de covid-19 —, uma pesquisa levada a cabo nos EUA pela  American Pet Products Association (APPA) mostrava que, numericamente, nos lares norte-americanos, os gatos ganhavam dos cachorros e só perdiam para os peixinhos de aquário.

Os gatos ganharam lugar nas casas como animais de companhia e muitas desses animais estão mais tempo com humanos do que com outros gatos. Nessa convivência, os pequenos felinos conseguem estabelecer comunicação dirigida a seus companheiros humanos. Entram nesse quadro, por exemplo, a lenta sequência de piscadas para a sinalização de emoções positivas (Humphrey, Proops, Forman, Spooner & McComb, 2020). Já se sabia que os gatos conseguem distinguir a voz de seus “donos” (Saito & Shinozuka, 2013). Mas reconhecer o próprio nome?

Um grupo de biólogos cognitivos japoneses publicou na Scientific Reports o resultado de um estudo que traz evidências de que um gato doméstico reage à escuta de seu nome de forma diferente da reação a outras palavras de extensão e acentuação semelhantes.

Em parte dos experimento, quatro nomes comuns de extensão e ritmo semelhantes eram enunciados com igual intervalo entre cada um, mostrando que a reação ao primeiro era mais intensa e já praticamente nula na quarta palavra. Essa situação mudava com o quinto enunciado, o nome do gato. A reação felina podia ser uma leve mudança na posição da orelha ou mesmo da cabeça; podia também ser um movimento da cauda. No vídeo abaixo o gato chega a se levantar.

E onde houvesse vários gatos na casa? Nesses casos o experimento observou a reação do animal à apresentação de uma sequência em que as quatro palavras iniciais eram os nomes de outros gatos e o quinto, seu nome. A reação não diminuiu a cada novo nome, sendo mais forte para o próprio nome.

Os cientistas japoneses levaram também o experimento para um cat café, tipo de cafeteria popular em Tóquio, em que os clientes podem tomar café brincando com muitos gatos. Nesse caso, os animaizinhos reagiam aos nomes de gatos, mas não diferenciavam o próprio.

Vídeo em GRIMM, David. Does your cat know its name? Here’s how to find out. Science, 4Abril2019.

Para meus alunos: podemos dizer que esses gatos dominaram uma língua humana?

Referências

AMERICAN PET PRODUCTS ASSOCIATION/APPA. 2007. New National Pet Owners Survey Details Two Decades of Evolving American Pet Ownership. https://www.americanpetproducts.org/press_releasedetail.asp?v=ALL&id=109

BARRAS, Colin. 2019. Cats know their names — whether they care is another matter. Nature, 4 April 2019. https://www.nature.com/articles/d41586-019-01067-z

GRIMM, David. 2019. Does your cat know its name? Here’s how to find out. Science, 4Abril2019. https://www.science.org/content/article/does-your-cat-know-its-name-here-s-how-find-out

HUMPHREY,Tasmin; PROOPS, Leanne; FORMAN, Jemma; SPOONER, Rebecca & McCOMB, Karen. 2020. The role of cat eye narrowing movements in cat–human communication. Scientific Reports, 10, 16503: 1-9.  https://www.nature.com/articles/s41598-020-73426-0#Fig1

LEDFORD, Heidi. 2007. Out of the desert, on to the sofa. Nature, 28 June 2007 . https://www.nature.com/articles/news070625-10

SAITO, Atsuko; SHINOZUKA, Kazutaka. 2013. Vocal recognition of owners by domestic cats (Felis catus). Animal Cognition, 16:685–690.

SAITO, Atsuko; SHINOZUKA, Kazutaka; ITO, Yuki & HASEGAWA, Toshikazu. 2019. Domestic cats (Felis catus) discriminate their names from other words. Scientific Reports,  9, 5394: 1-8. . https://doi.org/10.1038/s41598-019-40616-4


Durante a presente pandemia, comecei a postar neste blogue, ainda em 2020, pequenos textos escritos primariamente para as minhas turmas de Linguística I, que em geral concentram alunos dos cursos de Grego, Latim, Árabe, Hebraico, Japonês e Russo. São, por conseguinte, textos voltados para um aluno recém-saído do Ensino Médio, iniciante na Linguística. As citações nas línguas dos cursos desses estudantes, quando presentes, são propositais.

2022: Morte em Veneza, a obra-prima de Thomas Mann, completa 110 anos. Uma lição sobre interesses econômicos e saúde pública.

Nesta segunda-feira, 20 de dezembro de 2021, a AILP relembra Eugenio Coseriu (1921-2002)

Para fechar 2021, a AILP/ Associação Internacional de Linguística do Português homenageia o linguista Eugenio Coseriu no seu centenário de nascimento. A programação, no cartaz reproduzido abaixo, poderá ser acompanhada virtualmente em:

https://videoconf-colibri.zoom.us/j/86128152930#success

No cenário da linguística no Brasil Coseriu é lembrado principalmente por seu texto de 1952, Sistema, norma y habla, marcante para toda uma geração.

Nesse texto, Coseriu procura teorizar uma entidade que se situasse entre a langue (ou sistema) e a parole (ou fala) [….] Entre o sistema, pura abstração, e a fala, conjunto de realizações concretas individuais, Coseriu propunha um nível intermediário, mas também abstrato, a que chamou norma, em que o sistêmico e o individual convergem num conjunto de padrões sociais objetivos que, reunidos, se sobrepõem à atividade linguística do indivíduo” (Bagno, 2002: 11)

Nas palavras de Dante Lucchesi,

a motivação mais profunda da formulação coseriana é retirar da língua ou sistema [….] qualquer determinação social, de modo que o sistema linguístico pudesse ser estudado apenas por suas relações internas” (Lucchesi, 2002: 72)

A influência coseriana se faria sentir, por exemplo, no Projeto NURC/ Norma Urbana Oral Culta, que nascia em 1969 (Bagno, 2002).

Referências

BAGNO, Marcos. 2019. Cinquenta anos do NURC: das grandes realizações às novas esperanças. In: OLIVEIRA Jr., Miguel (org.). 2019. NURC 50 anos: 1969-2019. São Paulo: Parábola. p.9-18.

COSERIU, Eugenio. 1952.Sistema, norma y habla. Revista de la Facultad de Humanidades y Ciencias de la Universidade de la República, 6 (9): 114-181. http://humanidades-digitales.fhuce.edu.uy/files/original/e12bdca6b017f12956e3228e9fe19171.PDF

LUCCHESI, Dante. 2002. Norma linguística e realidade social. In: BAGNO, Marcos (org.) Linguística da norma. São Paulo: Loyola. p.63-92.


A oficialização de LIBRAS

Oito anos depois de promulgada a Constituição de 1988, o caminho para o reconhecimento legal de LIBRAS começava a tomar forma. Primeiramente com o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 131/1996. Na Câmara dos Deputados esse PLS dá origem ao Projeto de Lei (PL) nº 4.857/1988, sendo rejeitado o Projeto de Lei nº 657/1999, por ser menos antigo na Casa.

O Diário da Câmara dos Deputados de 25 de maio de 2000 registrou, de modo resumido, o obstáculo que se apresentava nas discussões:

Cumpre assinalar que existe uma polêmica em torno da natureza da comunicação gestual dos surdos. Há quem a considere uma língua natural, estruturalmente diferenciada das línguas orais. Neste caso, o surdo deixa de ser um portador de deficiência. Outros a consideram uma linguagem, isto é um meio de comunicação e expressão derivado de língua oral, sem estrutura própria. Para esta corrente, não existe uma língua “natural” do surdo, que deve ser tratado como portador de deficiência até que aprenda a expressar-se em português.

Em 2002, isto é, seis anos após o início da tramitação do PLS de origem, era sancionada a Lei nº 10.436/2002 , que reconhecia LIBRAS “meio legal de comunicação e expressão” no país.

Podemos dizer então que em 2002 o Brasil passou a ter duas línguas oficiais?

A Prof. Heloise Gripp (Letras -LIBRAS, UFRJ), em aula, chamou a atenção de que a resposta para essa pergunta é “não“. LIBRAS não é língua oficial, mas meio de comunicação e expressão ou  forma de comunicação e expressão reconhecida por instrumento legal.

A resistência em considerar LIBRAS uma língua — a tramitação nas duas Casas do Congresso Nacional registrou sucessivas alternâncias entre os termos língua e linguagem — parece ter levado a evitar o emprego de língua na definição presente no texto legal aprovado.

Compare-se essa redação — que reconhece um meio de comunicação — com a redação da lei municipal de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, que cooficializou, no mesmo ano de 2002, o Nheengatu, o Tukano e o Baniwa naquele município (ênfase adicionada).

LEI Nº 145, DE 11 DE DEZEMBRO DE 2002


Dispõe sobre a co-oficialização das Línguas Nheegatu, Tukano e Baniwa à Língua Portuguesa no município de São Gabriel da Cachoeira, estado do Amazonas, Brasil.

O Presidente da Câmara Municipal de São Gabriel da Cachoeira, AM
FAÇO saber a todos que a Câmara Municipal de São Gabriel da Cachoeira, estado do Amazonas decretou a seguinte:
LEI:
Art. 1º A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil.
Parágrafo Único – Fica estabelecido que o município de São Gabriel da Cachoeira, estado do Amazonas, passa a ter como línguas co-oficiais o Nhcegatu, o Tukano e o Baniwa.

Art. 2º O status de lingua co-oficial, concedido por esse objeto, obriga o município:
§ 1° A prestar os serviços públicos básicos de atendimento nas repartições públicas na língua oficial e nas três línguas co-oficiais, oralmente e por escrito.
§ 2° A produzir a documentação pública, bem como as campanhas publicitárias institucionais, na língua oficial e nas três línguas co-oficiais.
§ 3° A incentivar e apoiar o aprendizado e o uso das línguas co-oficiais nas escolas e nos meios de comunicações.
Art. 3° São válidas e eficazes todas as atuações administrativas feitas na língua oficial ou em qualquer das co-oficiais.
An. 4° Em nenhum caso alguém pode ser discriminado por razão da língua oficial ou co-oficial que use.
Art. 5º As pessoas jurídicas devem ter também um corpo de tradutores no município, conforme o estabelecido no caput do artigo anterior, sob pena da lei.
Art. 6° O uso das demais línguas indígenas faladas no município será assegurado nas escolas indígenas, conforme a legislação federal e estadual.
Art. 7° Revogadas as disposições em contrário.
Ar t. 8° Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.


Sala de Sessões da Câmara Municipal de São Gabriel da Cachoeira, Estado do Amazonas, em 11 de dezembro de 2002.
DIEGO MOTA SALES DE SOUZA
Presidente da Câmara Municipal

Em 2021 a luta pela oficialização de LIBRAS chega ao Senado: a PEC 12/2021

Em abril de 2021 começou a tramitar no Senado a Proposta de Emenda à Constituição Nº 12/ 2021, que objetiva alterar “o art. 13 da Constituição Federal para incluir a língua brasileira de sinais como um dos idiomas oficiais da República Federativa do Brasil“.

No site https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/148537 a matéria está aberta para consulta pública. Até às 9h20 do dia 9 de novembro de 2021 havia 1626 votos de apoio à proposição e 27 contrários. A votação está aberta a maiores de 12 anos.

ATUALIZAÇÃO; em 16Maio2022 havia 3073 votos para SIM e 63 para NÃO. Em 26Out2023 havia 3140 votos para SIM e 67 para NÃO.


A descrição linguística e os dados: o corpus (no plural, corpora) (ATUALIZAÇÃO)

Digamos que num passeio por Fortaleza, no Ceará, alguém nos diga algo como ta[h]a na cun[h]essa (o equivalente no meu carioquês soaria como tava na cunversai.e., estava na conversa) em que [h] representa um som que na ortografia do português seria aproximadamente representado por <rr> ou <r>.

O que ouvi pode aguçar minha curiosidade. Aquilo que ouvi seria uma característica daquele falante específico, uma marca de seu idioleto? Ou poderia afirmar que toda a Fortaleza tem essa marca, de produzir uma aspiração para realização de /v/? Ou ela predomina só em algumas áreas da cidade? Seria qualquer /v/ — em início de palavra também ou só numa sílaba não inicial? Só os falantes mais velhos teriam essa marca? Só os não escolarizados? Posso tentar formular uma hipótese acerca das circunstâncias que (des)favorecem o surgimento dessa aspiração. Mas só com aquela única ocorrência ouvida ao acaso? Não é o bastante.

Quando um linguista se propõe a analisar um determinado fenômeno de uma língua, ele precisa de dados. Há basicamente três métodos bem estabelecidos para consegui-los (Scholz, Pelletier & Pullum, 2015).

Os dados podem ser obtidos pela recolha de enunciados que foram ditos ou escritos e que formarão um corpus. Podem também resultar de elicitação informal — o linguista recorre a julgamentos do falante nativo da língua e tenta extrair informação desse falante (por exemplo, ‘Você acha que essa frase é boa?’). Ou ainda, de experimentação controlada, por exemplo, testes que medem o tempo de reação no reconhecimento de um enunciado.

Focalizamos a seguir apenas o primeiro tipo.

O corpus

A palavra latina corpus (daí o plural corpora), ‘conjunto’, é a denominação empregada pelos linguistas para denominar ‘conjunto de dados linguísticos’, sejam dados orais ou escritos. Esses dados são reunidos segundo critérios explícitos e o corpus é direcionado para um programa de pesquisa. Não se trata, portanto, de “toda a língua”, mas de uma amostra especificada por critérios claros, que permitirá confirmar ou não uma proposta de análise tendo por base usos linguísticos efetivamente atestados.

Um exemplo.

No início da década de 1980 começou a ser construído por um grupo de linguistas da Faculdade de Letras da UFRJ liderados pelo Prof. Anthony Naro o Corpus Censo , com o “objetivo precípuo de estudar fenômenos variáveis presentes no português falado por cariocas não-cultos, através de uma metodologia quantitativa” (Paiva & Scherre, 1999: 205). O Corpus Censo reuniu “48 horas de gravação com falantes adultos, divididos por três faixas etárias (15-25 anos, 26-49 anos e mais de 50 anos) e uma amostra de crianças na faixa de 7 a 14 anos” (Paiva & Scherre, 1999: 205) .

Essas informações sinalizam que a construção do corpus levou em conta uma dada variedade do português brasileiro e que seguiu critérios (Sinclair, 1996) que organizaram as respostas dos participantes segundo a idade, o sexo, a escolaridade. Essas características não são linguísticas, mas podem nos fazer prever a escolha provável do falante num aspecto da língua em que há variação.

Voltando ao exemplo inicial, o linguista não precisa de todos os fortalezenses, mas de uma amostra que seja significativa quanto ao grupo em estudo.

Sugestão de leitura: Naro & Braga. De quantos falantes preciso?

É o controle de qualidade que não se tem, por exemplo, numa busca por determinada sequência no Google. Um exemplo simplista: uma busca por Maria Rosa pode retornar João Maria. Rosa da Silva, ou flores para Maria; rosa foi uma delas — a busca não levará em conta a pontuação ou a capitalização (Scholz, Pelletier & Pullum, 2015). Com base no meu julgamento de falante nativo vou filtrar essas ocorrências. Mas quando ocorreram? Onde? O que sei do falante? Ou era um texto escrito? De que gênero? Era uma tradução? Como saber?

Com o desenvolvimento da tecnologia ligada à computação, a partir da década de 1960 começaram a surgir grandes bases de dados para diferentes línguas, algumas ultrapassando o bilhão de palavras.

Para o português, por exemplo:


Curios@ quanto ao /v/ em Fortaleza? Leia Arre Maria! Como tu cunrresa: a aspiração de /v/ no falar popular de Fortaleza, de Araújo, Rodrigues & Pereira (2018). 


POSTS RELACIONADOS

“On Linguistics” (PosLing-UFRJ) recebe a Prof. Alina Villalva (Universidade de Lisboa) para a palestra “Corpora de análise morfológica: frequência, dimensão e outras medidas das palavras”

Assista à palestra da Prof. Alina Alina Villalva (Universidade de Lisboa) sobre aspectos a considerar na construção de um corpus para análise morfológica em https://www.youtube.com/watch?v=EV4coD8ZXCk (duração: 1:35:23).


Coletar dados para a pesquisa por meio de um formulário na web: cuidados necessários

Apesar da facilidade para alcançar um grande número de pessoas e do baixo custo desse instrumento, a recolha de dados de pesquisa por meio de formulários na web tem suas armadilhas. Assista à palestra da Prof. Maria do Carmo Lourenço-Gomes (Universidade do Minho, Portugal) mediada pelo Prof. Marcus Maia (Universidade Federal do Rio de Janeiro), … Continuar lendo https://linguisticamcarlotarosa.wordpress.com/2021/02/15/para-coletar-dados-por-meio-de-um-formulario-de-pesquisa-na-web/ .

A palestra tem a duração de 1:32:06.


Referências

Araújo, Aluiza Alves; Rodrigues, Ana Germana Pontes & Pereira, Maria Lidiane de Sousa. 2018. Arre Maria! Como tu cunrresa: a aspiração de /v/ no falar popular de Fortaleza. Confluência, 54: 196-221. DOI: http://dx.doi.org/10.18364/rc.v1i54.239

Naro, Anthony & Braga, Maria Luiza. s.d. De quantos falantes preciso? mimeo.

PAIVA, Maria Conceição de & SCHERRE, Maria Marta Pereira. 1999. Retrospectiva sociolinguística: contribuições do PEUL. D.E.L.T.A., 15, N.º ESPECIAL: 201-232. https://doi.org/10.1590/S0102-44501999000300009

Scholz, Barbara C.; Pelletier, Francis Jeffry & Pullum, Geoffrey K. 2015. Philosophy of Linguistics. In: Zalta, Edward N. (ed.) The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2021 Edition), https://plato.stanford.edu/entries/linguistics/#LinMetDat forthcoming URL = <https://plato.stanford.edu/archives/fall2021/entries/linguistics/&gt;.

SINCLAIR, J. 1996. Preliminary recommendations on Corpus Typology. EAGLES, CEE. http://www.ilc.cnr.it/EAGLES96/corpustyp/corpustyp.html


Face aos desafios das aulas presenciais na graduação durante a pandemia, comecei a postar neste blogue, a partir de 2 de outubro de 2020, pequenos textos escritos primariamente para minhas turmas de Linguística I, que em geral concentram alunos dos cursos de Grego, Latim, Árabe, Hebraico, Japonês e Russo. São, por conseguinte, textos voltados para um aluno recém-saído do Ensino Médio, iniciante na Linguística num momento muito difícil nas vidas de todos. As citações nas línguas dos cursos desses estudantes, quando presentes, são propositais.

Atualização acrescentada em “Nesse país se fala que língua? “

Foram adicionados ao post em https://linguisticamcarlotarosa.wordpress.com/2021/08/02/linguas-minoritarias/ pequenos documentários em vídeo sobre o mirandês, o barranquenho e o minderico. Agradeço ao Prof. Henrique Cairus a parceria.


Línguas de sinais – 1

Maria Carlota Rosa UFRJ – Linguística 1-2020-1

Imagem: Flausino José da Costa GAMA. Iconografia dos 
Signaes dos Surdos-Mudos. Rio de Janeiro: 
Tipografia Universal de E. & H. Laemmert, 1875. 

As línguas esquecidas: a Linguística repercutia o espírito da época

O impacto das decisões do II Congresso Internacional da Educação de Surdos (ou simplesmente o Congresso de Milão) de 1880 sobre a percepção das línguas de sinais parecia não ter fim:

(1) O congresso, considerando a incontestável superioridade da fala sobre sinais, para reintegrar os surdos-mudos à vida social e dar-lhes maior habilidade de linguagem, declara que o método de articulação deve ter preferência sobre o de sinais na instrução e educação dos surdos-mudos;

(2) Considerando que a utilização simultânea de sinais e de fala tem a desvantagem de prejudicar a fala, a leitura labial e a exatidão das ideias, o congresso declara que o método oral puro deve ser o preferido” (Traduzido e citado por Brito, 2013: 28n19).

No início do século XX, o Ministério da Educação e Saúde Pública criava a Inspetoria Geral do Ensino Emendativo. O ensino emendativo destinava-se ao “ensino de anormais“, porque, dispunha o documento, havia no país “cêrca de quarenta mil cegos e aproximadamente trinta e cinco mil surdos-mudos e grande número de anormais de outra espécie, na sua quasi totalidade entregues à propria sorte” (Decreto nº 24.794, de 14 de Julho de 1934).

As línguas de sinais não escapariam ao desagrado nem mesmo no INES/ Instituto Nacional de Educação de Surdos. Assim, no seu centenário, em 1957, o uso de sinais foi proibido na instituição. Nesse mesmo ano o Hino ao Surdo Brasileiro, de Ana Rimoli de Faria Dória (que dirigiu o INES de 1951 a 1961) e Astério de Campos encorajava a pátria a salvar os surdos do “ensino antiquado nos simples dedos da mão” (ver Lulkin, 2000:1).

As línguas de sinais na Linguística antes de 1960

Até 1960, quando se falava de língua num texto de Linguística, tinha-se em mente uma língua oral, isto é, uma língua que é primariamente falada. Não havia referências a línguas de sinais — aliás, estas línguas não eram percebidas como línguas — assim, estavam fora do interesse da Linguística.

Mesmo o  Ethnologue, o grande catálogo de línguas do mundo, somente passaria a incluir línguas de sinais na sua 11ª. edição, em 1988. Foram então arroladas 69 línguas de sinais.

Desde então, mais línguas de sinais têm sido adicionadas ao catálogo. A edição de 2020 incluiu 143 línguas de sinais vivas .

1960: começa a mudança na Linguística

Em 1960, William Stokoe (1919-2000), professor da instituição que na década de 1980 passaria a ser denominada Universidade Gallaudet (EUA), famosa desde o século XIX na educação de surdos, foi o editor da obra considerada um marco na mudança desse panorama na linguística: Sign and Culture: A Reader for Students of American Sign Language [‘sinal e cultura: uma antologia para estudantes da língua de sinais americana’], uma reunião de trabalhos publicados entre 1972 e 1979 na revista Sign Language Studies, criada por ele. As línguas de sinais tornavam-se objeto de estudo linguístico.

No tocante ao Brasil, em 1968 Jim Kakumasu publicava uma análise da língua de sinais em uso entre os Urubu (ou Ka’apór, Kambõ, Urubu-Caápor, Urubu-Kaápor, Kaapor), povo indígena habitante do norte do Maranhão, com base nos dados que coletara entre 1962 e 1965.

Em 1979 Eulália Fernandes (Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ UERJ) então aluna do Doutorado em Letras (Linguística) da UFRJ, começava a elaborar, sob orientação do saudoso Prof. Jürgen Heye (1939-2011) a tese O surdo e seu desempenho linguístico, defendida em 1984.

Mas é com Lucinda Ferreira Brito — ou Lucinda Ferreira, como registra seu currículo lattes e pelo menos uma portaria publicada no Boletim da UFRJ — que se unem a pesquisa linguística brasileira e o envolvimento na luta da comunidade surda pelo reconhecimento de LIBRAS como língua natural.

Lucinda Ferreira torna-se professora do Departamento de Linguística e Filologia da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ em 1987. Com ela a pesquisa sobre línguas de sinais ganhava sistematicidade no Departamento de Linguística e Filologia, com a criação de um núcleo de pesquisa, institucionalizado na década seguinte como Laboratório de Linguagem e Surdez. Aos poucos surgiram no Departamento de Linguística e Filologia disciplinas de graduação voltadas para LIBRAS e cursos de pós-graduação lato sensu. Em resposta às novas necessidades, o Departamento de Linguística e Filologia criava o Setor de LIBRAS, que vinha juntar-se ao Setor de Linguística e ao Setor de Filologia. Preparava-se assim a criação dos cursos de graduação de LIBRAS na UFRJ. Aposentada a Prof. Lucinda Ferreira em janeiro de 2010, caberia à Prof. Deize Vieira dos Santos a liderança no esforço de criação na UFRJ: (a) do Bacharelado em Letras-LIBRAS: Tradução e Interpretação; (b) da Licenciatura  em Letras-LIBRAS; e (c) ainda de uma turma especial PARFOR/ Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica para a Licenciatura  em Letras-LIBRAS, aprovados no Conselho Universitário em 2013. Todos esses cursos entraram em funcionamento em 2014. E assim o Departamento de Linguística e Filologia produzia um spin-off: o Setor de LIBRAS transformava-se no Departamento Letras-LIBRAS.

O caminho para o reconhecimento de LIBRAS seria longo: embora Lucinda Ferreira, por exemplo, tenha sido convidada a participar das reuniões da Assembleia Nacional Constituinte em 1988 (Brito, 2013: 173), a Constituição de 1988 não contemplou LIBRAS: seria necessário esperar por 2002 para ver a realização desse reconhecimento com a Lei  Nº 10.436, de 24 de abril de 2002.

Em 1982 Lucinda Ferreira trabalhou entre os Ka’apor e em 1984 publicava na revista Sign Language Studies o artigo Similarities & Differences in Two Brazilian Sign Languages [‘semelhanças e diferenças em duas línguas de sinais brasileiras’], no qual demonstrava a existência de duas línguas de sinais no território brasileiro: a que denominou a língua de sinais Urubu-Kaapor (UKSL, na sigla em inglês), explicando que com esse nome reunia a autodenominação do povo (Kaapor) e a denominação que outros brasileiros davam àquele povo (Urubu); e a língua de sinais em uso em São Paulo (SPSL, na sigla que criou em inglês), ressaltando que esta era a mesma do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Santa Catarina, embora não pudesse afirmar então se era a mesma em todos os 23 estados nas áreas em que se falava português (Ferreira Brito, 1984: 46).

Em 1979, quando Lucinda Ferreira começara a pesquisa com a língua de sinais empregada em São Paulo e Eulália Fernandes, no Rio, a denominação LIBRAS/ Língua Brasileira de Sinais ainda não fora criada. Como aponta Brito (2013:16n10), essa língua “foi chamada de linguagem gestual, linguagem das mãos, linguagem mímica ou, mais comumente, mímica, sendo que, a partir dos anos 1980, à medida que esse modo de comunicação foi adquirindo o estatuto de língua surgiram várias outras denominações: linguagem brasileira de sinais, língua de sinais dos centros urbanos brasileiros, língua de sinais brasileira e língua brasileira de sinais“. Lucinda Ferreira e o GELES/ Grupo de Estudo sobre Linguagem, Educação e Surdez criariam a denominação Língua de Sinais dos Centros Urbanos do Brasil (LSCB); Eulália Fernandes, LSB (Língua de Sinais do Brasil). O nome LIBRAS/ Língua Brasileira de Sinais surge na década de 1980 como autodenominação, resultado da luta do movimento surdo: “Queremos que prevaleça o nome que escolhemos porque representa nossos direitos e conquistas” (FENEIS, 1993, citado por Brito, 213: 178).

Chama a atenção o contraste entre a inclusão social do indivíduo surdo entre os Ka’apor e a exclusão do surdo na grande comunidade urbana:

In Sao Paulo, sign language is used almost exclusively by deaf people among themselves. It may be known and used, but rarely, by hearing members of a families including a deaf person. A consequence of this is a separation between deaf and hearing people. Even if deaf people try to integrate with the hearing community by using spoken language, the deaf community remains virtually unknown to the hearing population — completely unknown to almost all. Deaf people in Sao Paulo have generally received an oralist education at school and are, potentially, bilingual. The use of Portuguese and SPSL by the deaf is determined by the setting: in clubs and associations of deaf people (i.e. in the Deaf world), the language used is sign language; in other places, in the hearing world, the language the deaf person uses or tries to use is Portuguese.

In contrast, the Urubu-Kaapor deaf people are monolingual and most of the Urubu-Kaapor hearing people are bilingual; i.e. they master both spoken Kaapor for their intercommunication and UKSL for their communication with the deaf people in their villages. As there are no schools, deaf people do not have special education and consequently are not forced to learn the spoken language. It is more common to see hearing people using sign language than deaf people trying to learn spoken Kaapor.

(Brito, 1984: 46-47)

Assim, quando Joaquim Mattoso Câmara Jr. (1973: 24) definia língua como um sistema de elementos vocais ele refletia seu tempo.


Referências

BRITO, Fábio Bezerra de. 2013. O movimento social surdo e a campanha pela oficialização da língua brasileira de sinais. São Paulo: USP/Programa de Pós-Graduação em Educação. Tese de Doutorado. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-03122013-133156/publico/FABIO_BEZERRA_DE_BRITO.pdf

CÂMARA Jr., Joaquim Mattoso. 1972. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes.

FERREIRA BRITO, Lucinda. 1984. Similarities & Differences in Two Brazilian Sign Languages.
Sign Language Studies, 42: 45-56. Spring 1984. DOI: https://doi.org/10.1353/sls.1984.0003

Kakumasu, Jim. 1968. Urubú Sign Language. International Journal of American Linguistics, 34 (4):275-281. https://www.sil.org/system/files/reapdata/15/37/26/153726163145388687560411655832836752904/6059_Urubu_Sign_Language.pdf

LULKIN, Sérgio Andrea. 2000. O silêncio disciplinado: a invenção dos surdos a partir da representação de ouvintes. Porto Alegre: UFRGS. Dissertação de Mestrado em Educação. https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/83551/000270785.pdf?sequence=1

Face aos desafios das aulas não presenciais na graduação, comecei a postar neste blogue, a partir de 2Out2020, pequenos textos dirigidos primariamente a minhas turmas de Linguística I. São, por conseguinte, textos voltados para um aluno iniciante na Linguística e no primeiro semestre do curso de Letras.


Linguística, linguista-2

Maria Carlota Rosa – UFRJ – Linguística I – 2020-1 

Atualizado em 27Fev2023

A Linguística é uma ciência 

Conta, por isso, com um corpo de conceitos, vocabulário e metodologia. O trabalho do linguista envolve observaçãoG, hipóteses sobre os fenômenos observados, pode envolver experimentosG para a  testagem de hipóteses que venham a confirmar ou não previsões de uma teoria sobre a linguagem.

Descobertas levam a novas perguntas, novos problemas, surgem explicações a partir de outras perspectivas. É fácil perceber essa dinâmica se resolvermos fazer, por exemplo, uma consulta a um dicionário de linguística escrito em meados do século XX. Possivelmente não encontraremos alguns dos termos que nos levaram à consulta, ou os encontraremos, mas definidos de um modo que nos pode parecer diferente (e provavelmente  o seja) daquele emprego que gerou nossa dúvida [ver exemplo com o termo metáfora mais adiante.].

Não é preciso, porém, comparar publicações distantes no tempo. Linguistas ativos na atualidade vêm a tarefa primordial da linguística de diferentes pontos de vista (i.e., eles se prendem a teorias diferentes). Para aqueles ligados à gramática gerativaG, por exemplo, a linguagem é um módulo autônomo da mente humana, e a linguística deve procurar estabelecer os universais da estrutura linguística, não aprendidos mas tacitamente sabidos, que auxiliam as crianças na aquisição da linguagem. Por sua vez, para aqueles ligados à linguística cognitivaG, a linguagem não é um módulo autônomo da mente, e a linguística deve explicar a linguagem em termos de sua interação com princípios cognitivos gerais, não apenas linguísticos.


Um exemplo de um termo que remete a conceitos diferentes:  metáfora. Aprendemos o que é metáfora no colégio quando estudamos Figuras, um recurso estilístico.

Rocha Lima (1965: 489) : “Metáfora — É a mais importante das figuras. Ela transporta o nome de um objeto a outro, graças a um caráter qualquer comum a ambos: a folha da árvore dá seu nome à folha de papel, por exemplo, em razão da pequena espessura de ambas”

Já na faculdade, o dicionário de Mattoso Câmara Jr., por muito tempo obra de referência obrigatória nos cursos de Letras brasileiros, definia metáfora como uma figura:

Figuras de Linguagem – Aspectos que assume a linguagem para fim expressivo […] afastando-se do valor linguístico normalmente aceito.”

Metáfora – É a figura de linguagem (v.) que consiste na transferência (gr. metaphorá) de um termo para um âmbito de significação que não é o seu.

Metáfora não parece ser a mesma coisa, por exemplo, no texto de 2020 Como criamos significados na linguagem cotidiana?, da linguista Lilian Ferrari, professora deste Departamento de Linguística e Filologia da UFRJ. Esse texto se prende à visão inaugurada por George Lakoff nos anos 1980, que trouxe a metáfora da linguagem poética para a explicação de nossa percepção do mundo: “as metáforas ocorrem na linguagem como reflexo do nosso pensamento. Somos capazes de pensar metaforicamente e, por isso, também falamos metaforicamente. E se é assim, faz sentido que não apenas os textos literários, mas também a nossa linguagem cotidiana seja permeada de metáforas” (Ferrari, 2020).

Para ela, expressões como “maratonar um seriado” (em que se assume para o ato de assistir a um seriado de tv as marcas da longa duração sem interrupções das maratonas), “combater fake news” ou “bloquear um contato no WhatsApp” (que trazem uma visão bélica para a comunicação) são usos metafóricos que entraram no nosso quotidiano. Conceitos abstratos são traduzidos para um tipo de experiência mais familiar. “Essa espécie de tradução é justamente a metáfora, que nos permite tratar conceitos abstratos de forma mais concreta” (Ferrari, 2020).

Desde 2020, nossa experiência com a pandemia causada pelo novo coronavírus tem sido pensada metaforicamente como uma guerra (ver, por exemplo, Constanza Musu –War metaphors used for COVID-19 are compelling but also dangerous ; José-Manuel Sabucedo, Mónica Alzate & Domenico Hur – COVID-19 and the metaphor of war – COVID-19 y la metáfora de la guerra). Até quando não são empregadas palavras desse campo semântico (guerra, inimigo, luta, estratégia) para falar da COVID-19, surgem outras que trazem à mente a Segunda Guerra Mundial (lógico, para quem tem mais idade…), como, em inglês, a expressão “we’ll meet again” [‘nós nos encontraremos de novo’], empregada pela Rainha Elizabeth II num discurso em 5 de abril de 2020, menção à canção de esperança lançada em 1939, famosa na voz de Vera Lynn (1917-2020).


Digressão bibliográfica: o título do dicionário de Mattoso Camara Jr.

O dicionário de Mattoso — do linguista Joaquim Mattoso Camara Jr. (1904-1970) — é uma obra que foi mudando de título conforme mudava de casa editora. O Prof. Francisco Gomes de Matos, Professor Emérito da Universidade Federal de Pernambuco, registrou, num artigo de 2004, essas atualizações impostas ao título da obra:

Este importante legado mattosiano tem uma história singularíssima: foi lançado em 1956, pelo Centro de Pesquisas da Casa de Rui Barbosa (RJ), com o título de Dicionários de Fatos Gramaticais (DFG); em 1965, J. Ozon-Editor (RJ) publicou a segunda edição, intitulada Dicionário de Filologia e Gramática e, em 1977, postumamente, a Editora Vozes (Petrópolis, RJ) publicou a sétima edição, sob o título atualizado de Dicionário de Linguística e Gramática (DLG).

Digressão cultural: uma canção para os britânicos que partiam para a guerra

  • We’ll meet again“, lembrada recentemente por conta de um discurso da Rainha Elizabeth II e novamente poucas semanas depois em razão da morte de Vera Lynn, aos 103 anos), era cantada no embarque de tropas britânicas que partiam para lutar na Segunda Guerra Mundial. É possível ouvir a gravação em <https://www.youtube.com/watch?v=cHcunREYzNY>.
  • A canção “Vera“, no álbum The Wall, de Pink Floyd, lançado em 1979, remete à canção de 1939. Isto é: 40 anos depois a referência podia ser compreendida, mas desta feita remetia à desesperança:<https://www.youtube.com/watch?v=MummZBgO3Ek>.

A Linguística tem por objeto a linguagem, mas …

Os diferentes focos assumidos na pesquisa fazem com que a linguística possa parecer um caleidoscópio de interesses diferentes em relação à linguagem. Se pensarmos numa grande divisão das ciências em ciências naturais (i.e., as ciências físicas, as ciências biológicas e a matemática) e em ciências sociais, a linguística, tal como entendida na atualidade, está em ambos os grupos.

A linguística é uma das ciências sociais, uma vez que as línguas estão no cerne da vida em sociedade: por meio das línguas se expressam os graus de formalidade  em diferentes situações, as marcas que permitem identificar de onde é o falante; as marcas de sua escolarização. Sabemos, por exemplo, que em determinadas sociedades há palavras que não devem ser ditas, ao menos na presença daqueles a quem se deve um nível de respeito diferenciado, perguntas que não podem ser feitas a qualquer pessoa… As questões de interesse da linguística a levam a dialogar com a sociologia, com a antropologia social, mas também com a história, a educação…

A linguística atual também se colocou entre as ciências naturais, ao propor a hipótese que ficaria conhecida como gramática gerativaG de que há na mente/cérebro da criança um componente inato e específico da espécie dedicado à linguagem, que se desenvolverá numa ou mais línguas a partir dos poucos e desorganizados dados linguísticos que estão no entorno de qualquer criança desde a mais tenra idade (a pobreza do estímuloG). O uso de qualquer dessas línguas será marcado pelo aspecto criativoG, isto é: nosso uso linguístico revela que podemos produzir e compreender enunciados novos, que não ouvimos anteriormente. Com esta visão, Noam Chomsky reclamava para a linguística o papel  de “biologia teórica” ou de “psicologia teórica”  (in Sklar, 1994: 37).

E por que se diz que é uma ciência cognitiva?

Esta classificação, cuja meta é uma visão integrada do conhecimento humano, deriva de um movimento surgido entre cientistas de diferentes áreas em meados do século XX que entendiam que algumas respostas para o estudo da mente e da inteligência estavam tradicionalmente alocados em outra área que não a sua. Um dos marcos desse movimento foi o Symposium on Information Theory, realizado no MIT/ Massachusetts Institute of Technology  entre 10 e 12  de setembro de 1956.  Um dos trabalhos desse encontro foi  Three models for the description of language, do então  jovem linguista Noam Chomsky. Ao discutir frases como  “Colorless green ideas sleep furiously” [‘ideias verdes sem cor dormem furiosamente’], Chomsky colocava em primeiro plano o conhecimento linguístico, aquilo que intuitivamente percebemos nas frases de nossa língua, mas que será tarefa do linguista explicitar.

hexagono cognitivo
Fig. 1 – O hexágono cognitivo
em Miller (2003:143)

Em 1978, o relatório de um grupo de cientistas reunidos por uma entidade privada novaiorquina, The Alfred P. Sloan Foundation, dava conta da convergência de seis disciplinas na ciência cognitiva: a neurociência, a ciência da computação, a psicologia, a filosofia, a linguística e a antropologia, interconectadas por subdisciplinas como neuropsicologia e psicolinguística.Essa convergência foi representada no hexágono cognitivo (Fig. 1). Cada linha nesse diagrama representava uma área de pesquisa interdisciplinar já então bem estabelecida. “A ciência da computação e a linguística já estavam bem ligadas pela linguística computacional. A linguística e a psicologia estavam ligadas pela psicolinguística, a antropologia e a neurociência pelos estudos da evolução do cérebro e assim por diante” (Miller, 2003: 143).

As interfaces

O século XX assistiu à eclosão da interdisciplinaridade. Das diversas interseções temos agora uma linguística com múltiplas facetas, que tentei representar na Fig 2 a seguir.

Linguistica
Fig. 2 – A interdisciplinaridade da linguística

Glossário

Argumento da pobreza do estímulo. Argumento tomado como evidência em favor da hipótese de que nosso organismo é biologicamente preparado para desenvolver a linguagem: os dados que constituem a experiência linguística de uma criança aprendendo sua língua são poucos e incluem fragmentos de frases, frases mal-formadas — isto é, dados que não são generalizados pela criança — mas apesar disso ela consegue, em tempo mínimo, falar como a maioria do seu entorno (ver Rosa, 2010: 98-99).

Criatividade linguística. A capacidade humana de produzir e compreender frases nunca ouvidas anteriormente. O aspecto criador do uso linguístico significa: a) que o uso normal de uma língua é inovador “no sentido de que muito daquilo que dizemos no curso do uso normal da linguagem é inteiramente novo, não é a repetição de nada que tenhamos ouvido antes“; 2) que é livre do controle de estímulos (“[p]or causa desta ausência de controle pelos estímulos é que a linguagem pode servir como instrumento do pensamento e da auto-expressão“); e c) é adequado à situação (v. Chomsky, 1968 [1977]: 25-26).

Observação. A atenção a determinado fenômeno nas condições em que ocorre, a fim de reunir dados que darão suporte às descrições, predições e explicações de dada teoria.

Experimento. A atenção a aspectos de determinado fenômeno que foram isolados e preparados para a obtenção de dados que darão suporte às descrições, predições e explicações de dada teoria.

Gramática Gerativa. Enfoque teórico da linguística associado aos trabalhos do linguista norte-americano Noam Chomsky e seus seguidores.

Linguística Cognitiva. Enfoque teórico da linguística que tem como expoentes Ronald Langacker, George Lakoff, Leonard Talmy e Gilles Fauconnier (1944-2021).

Teoria. Um sistema organizado de conhecimentos obtidos por observação e experimentação que descreve, faz previsões e explica as propriedades de um recorte do real.


Referências

CAMARA Jr., J. Mattoso. 1973. Dicionário de Filologia e Gramática. 5a. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: J. Ozon.

CHOMSKY, Noam. 1956. Three models for the description of language. Symposium on Information Theory. Cambridge, Mass.:  MIT/ Massachusetts Institute of Technology, 10-12  de setembro de 1956. https://chomsky.info/wp-content/uploads/195609-.pdf

CHOMSKY, Noam. 1968. Linguagem e pensamento. Trad. Francisco M. Guimarães. Petrópolis: Vozes, 1977.

FERRARI, Lilian. 2020. Como criamos significados na linguagem cotidiana? Roseta, 3 (1).  http://www.roseta.org.br/pt/2020/05/29/como-criamos-significados-na-linguagem-cotidiana/

FERRARI, Lilian. 2011.Introdução à Linguística Cognitiva. São Paulo: Contexto.

MILLER, George A. 2003. The cognitive revolution: a historical perspective. TRENDS in Cognitive Sciences, 7 (3): 141-144. March 2003. https://www.cs.princeton.edu/~rit/geo/Miller.pdf

[KEYSER, Samuel Jay; WALKER, Edward & MILLER, George A.]. 1978.  Cognitive Science, 1978. Report of The State of the Art Committee to The Advisors of The Alfred P. Sloan Foundation. – [Não encontrei um link válido quando desta atualização, mas encontrei o relatório da Fundação de 1978 com uma parte para a ciência cognitiva em https://sloan.org/storage/app/media/files/annual_reports/1974-1978_annual_reports.pdf ]

LIMA, Rocha. 1965. Gramática normativa da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia.

MATOS, Francisco Gomes de. 2004. O Dicionário de Linguística e Gramática: notas de um leitor-posfaciador.  DELTA: Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e Aplicada20(spe), 159-164.  <https://revistas.pucsp.br/index.php/delta/article/view/38030>

MUSU, Constanza. 2020. War metaphors used for COVID-19 are compelling but also dangerous. The Conversation, 8Abr2020. <https://theconversation.com/war-metaphors-used-for-covid-19-are-compelling-but-also-dangerous-135406&gt;

ROSA, Maria Carlota. 2010. Introdução à (Bio)Linguística: Linguagem e mente. São Paulo: Contexto.

SCHOLZ, Barbara C., PELLETIE, Francis Jeffry & PULLUM, Geoffrey K. 2015. Philosophy of Linguistics. In ZALTA, Edward N. (ed.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2015 ed.). <https://plato.stanford.edu/archives/win2016/entries/linguistics/>

SABUCEDO, José-Manuel; ALZATE, Mónica & HUR, Domenico. 2020. COVID-19 and the metaphor of war (COVID-19 y la metáfora de la guerra). International Journal of Social PsychologyRevista de Psicología Social, Volume 35 (3): 618-624 , <https://doi.org/10.1080/02134748.2020.1783840>

SKLAR, Robert. 1994. The Chomskyan Revolution. In: OTERO, Carlos P. (ed.) 1994. Noam Chomsky. Critical Assessments. London: Routledge. vol. 3 p. 27-37.

THAGARD, Paul. 2018. Cognitive Science. In ZALTA, Edward N. (ed.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2019 Edition)<https://plato.stanford.edu/archives/spr2019/entries/cognitive-science/>.

Face aos desafios das aulas não presenciais na graduação, comecei a postar neste blogue, a partir de 2Out2020, pequenos textos dirigidos primariamente a minhas turmas de Linguística I. São, por conseguinte, textos voltados para um aluno iniciante na linguística e no primeiro semestre do curso de Letras.


Linguística, linguista-1

Atualizado em 25Fev2023

Maria Carlota Rosa – UFRJ – Linguística I – 2020-1

“Um linguista é um especialista em linguística”

Para boa parte das pessoas fora da Faculdade de Letras esta frase, embora no dicionário, é misteriosa. Linguista tem a ver com língua, mas … Também não ajuda tentar inferir o que um linguista faz tomando por base os personagens apresentados como linguistas em obras de ficção — como Annie Walker ou Louise Banks.

A linguista Annie Walker, personagem vivida pela atriz Piper Perabo entre 2010 e 2014 no seriado de tv Covert Affairs/Assuntos Confidenciais, precisa no seu trabalho de saber lutar, atirar, pilotar embarcações, motos, saltar do alto de prédios para telhados vizinhos, tudo isso sem se atrapalhar com os maravilhosos sapatos de solado vermelho e finos saltos 10. Ela fala muitas línguas. Ela é, então, poliglota, mas não linguista.

E que dizer de Louise Banks, a linguista interpretada por Amy Adams em Arrival/A Chegada, longa metragem de 2016?

No momento em que se descobre uma população em algum lugar remoto da Terra — cabe frisar: de terráqueos —, falantes de uma língua ainda desconhecida, os linguistas têm expectativas sobre a estrutura dessa língua. Afinal nenhum linguista mais espera que as línguas possam diferir entre  si “sem limites e de modos imprevisíveis“, como afirmava o linguista alemão Martin Joos (1907-1978) na década de 1950 (Joos, 1957: 196). Na atualidade nenhum linguista esperaria encontrar, por exemplo, uma língua que fosse apenas uma lista de poucas palavras “muito gerais”, argumento com que o jesuíta Azpilcueta Navarro se desculpava junto aos Irmãos da Companhia de Jesus por não ter escrito à época uma gramática do tupinambá. É que todo o conhecimento sobre as línguas do mundo diz respeito ao nosso mundo, a mentes e cérebros humanos.

Os linguistas têm procurado demonstrar que, não obstante a grande variedade de línguas no mundo, o fato de todas serem línguas pressupõe que todas têm algo em comum, porque têm por base mente/cérebro de seres humanos. As hipóteses linguísticas fazem sentido em relação ao conhecimento acumulado sobre as línguas, sobre a biologia humana, a psicologia humana, as sociedades humanas… Mas o que se saberia sobre alienígenas erráticos?

A simples ideia de contactar os tais heptápodes lançando mão de um alfabeto para apresentar uma palavra em inglês… é mais esquisita que a do guerreiro espanhol Francisco Hernández de Córdoba (1475-1526) perguntando em espanhol aos indígenas que contactou ao chegar ao lugar que hoje é parte do México qual o nome daquele lugar e tendo a certeza de que o que lhe soou como “Yucatán” respondia à sua pergunta. Logicamente não respondia: podia ser traduzido como “não te entendo”.

Tentar pensar como um extra-terrestre (????!!!!!) como a chave para compreender a língua desses seres nos dá uma excelente história, mas não está entre as tarefas de qualquer linguista. Linguista não é sinônimo de poliglota, alguém que domina várias línguas, até de ETs. Nem tem a obrigação de ser poliglota. 

É recorrente na internet um comentário atribuído à linguista Lynne Murphy (Universidade de Sussex), autora do blog  Separated by a Common Language, que compara perguntar a um linguista quantas línguas ele fala a perguntar a um  médico quantas doenças ele já teve. Em outras palavras: é irrelevante para sua atividade.

Aliás: muitos linguistas se dedicam à própria língua.

Como um ideal impraticável, ele [o/a linguista] deveria saber alguma coisa de cada língua; certamente isto é impossível, e na prática muitos linguistas concentram-se num número limitado de línguas, incluindo suas próprias línguas nativas, e variando o número de línguas estudadas e a profundidade dos conhecimentos adquiridos sobre cada uma, por fatores pessoais, de um linguista para outro.
(Robins, 1967: 2)

Qual a graça em estudar uma língua que é a própria língua nativa?

Essa pergunta revela a surpresa com uma realidade que parece esquisita apenas porque se deu a estudar o contexto que conhecemos de nossa formação escolar. Na escola estudamos a nossa língua para usá-la em acordo com formas com prestígio social; estudamos línguas estrangeiras para usá-las com fluência ou como instrumento para leitura, por exemplo. O estudo de línguas no currículo escolar faz parte da nossa formação humanística, e/ou da preparação para o mercado de trabalho.

Mas o estudo pode ter finalidade diferente: não ter por meta “falar bonito”, ser poliglota, mas ampliar o que se sabe sobre a linguagem e sobre as milhares de línguas do mundo. O quanto as línguas se assemelham? O quanto podem diferir entre si? Há uma localização no cérebro, algo como um centro único da linguagem ou é muito mais complicado? Por que todas as crianças começam a falar em torno da mesma idade? Por isso se inclui o adjetivo científico na definição:

Linguística é o estudo científico da linguagem

Na dependência do tipo de pesquisa que desenvolve, o linguista pode coletar dados linguísticos numa comunidade linguística (é o trabalho de campo), numa biblioteca, num laboratório, num hospital, numa sala de aula, na internet…

Esse estudo, que se enriquece na interação com outras áreas, pode vir a ter aplicações variadas. A linguística pode-nos dar meios, por exemplo, de melhorar os métodos de ensino de línguas na escola. Essa foi a razão de a disciplina Linguística ter sido inserida nos cursos de Letras  que se formariam no Brasil na década de 1960.

Você se matricularia num curso de língua estrangeira que lhe daria um certificado de proficiência no dia em que demonstrasse saber de cor 1000 ou 2000 frases? Essa proposta pedagógica — a Janua Linguarum (lat. ‘porta das línguas’) — já teve defensores (e eventualmente ainda parece ter) no século XVII, quando ninguém mais era falante nativo de latim, mas latim era a língua das ciências e humanidades. Inicialmente o método estava voltado para falantes de espanhol, depois expandido para até oito línguas simultaneamente. Consistia em o estudante decorar cerca de 5300 palavras arrumadas em 1141 frases em latim pareadas com a tradução, inicialmente em espanhol, depois com as traduções em todas as demais línguas, organizadas as frases em grupos temáticos de 100. Cada palavra aparecia uma única vez, exceto a conjunção aditiva, o relativo e o verbo de ligação equivalente a “ser”. O método foi usado, por exemplo, para ensinar tupinambá a quem sabia latim — em 29 frases (ver Rosa, 1994). Segundo essa proposta de ensino, falaríamos uma língua porque temos boa memória

Podemos falar e entender um número infinito de frases em português, não só um milhar delas. Fazemos isso desde crianças. Simplesmente usamos a língua para falar do mundo, de nossas emoções, vontades.

Fazemos isso cotidianamente, sem procurar por frases na memória. Mas também sem pensar nos mecanismos que permitiram a formação de cada frase, nem a pronúncia perfeita ou o emprego de vocabulário de um falante nativo. O conhecimento que nos permite fazer isso é bastante sofisticado e cabe ao linguista demonstrar isso.

Um pequeno exemplo. A loja de livros de literatura vende livros de literatura. E  a loja de livros do shopping? Não sabemos se a loja tem alguma especialidade, mas certamente não vende livros de shopping. A ordem linear das duas expressões é paralela, mas de imediato decompomos ambas as expressões de modo diferente. A estrutura é mais complexa que a simples ordem linear das palavras e, por conta disso, esperamos que uma língua não tenha regras estranhas como “coloque a negação três palavras depois do verbo”.

O que acontece com um adulto que falava português e, por conta de um problema neurológico, já não consegue ser fluente na sua língua nativa? Ou começa a apresentar involuntariamente um estranho sotaque de lugar nenhum?  O que era o conhecimento adulto dessa língua e o que ficou diferente? Que tipo de luz problemas como esse trazem para a compreensão de uma língua e da faculdade da linguagem?

Como responder a tantas perguntas?

Os linguistas descrevem as diferentes partes do sistema linguístico de uma língua: a fonética e a fonologia, a morfologia, a sintaxe,  a semântica e o vocabulário ou léxico.

Quando nos chegam registros linguísticos do passado, o trabalho do linguista pode focalizar como uma língua se apresentava em dada época. Mas ele pode também procurar por aspectos mais gerais: determinada característica encontrada em dada língua está presente em todas as línguas ou apenas num dado grupo? Para Crowley (2007:11) esse é o arcabouço que permite procurar respostas para as “grandes questões” da linguística. 

Até meados do século XX as estruturas linguísticas eram o foco da linguística [ver O objeto da linguística. Ou: de que a linguística trata?]. Mas por volta da metade desse século começaram a surgir questões que interagem com outras áreas de pesquisa, e o que se segue são alguns exemplos:

  • a linguagem na evolução da espécie;
  • como se dá a aquisição de uma língua pela criança;
  • em que condições um falante bilíngue com saúde perde sua língua nativa no todo ou em parte (o que denominamos atrito linguísticoG);
  • a língua na sociedade;
  • as afasiasG.

A linguística se ocupa da linguagem e de sua manifestação nas línguas 

Em 2023 o Ethnologue calcula a existência de 7.168 línguas vivas, sejam orais (como o português) ou de sinais (como LIBRAS). Muitas já desapareceram e muitas estão em risco de desaparecer proximamente.

A documentação reunida por séculos sobre as línguas do mundo nos permite afirmar:

  • que todas as línguas têm gramática;
  • que podemos formar frases em qualquer língua;
  • que podemos fazer perguntas de resposta sim ou não;
  • que podemos dar ordens ou comandos;
  • que todas organizam suas frases com padrões mais ou menos comuns, como Sujeito-Objeto-Verbo, por exemplo.

Por outro lado, não são todas as línguas em que os nomes mudam de forma na dependência de sua função na frase, como acontecia em latim.


GLOSSÁRIO

afasia. (do gr. a- ‘sem’ + -phasis ‘fala’, pelo fr. aphasie). Supressão parcial ou completa da capacidade de uso da língua e/ou de compreensão linguística depois de uma lesão cerebral (Rosa, 2010: 177).

atrito linguístico. Problemas com a língua nativa (ou L1) quando um falante bilíngue passa longos períodos falando outra língua (ou L2) (Schmid).

gramática. 1. O conhecimento linguístico internalizado na mente do falante. 2. O estudo desse conhecimento.

Referências

ARRIVAL/ A Chegada. 2016. Direção de Denis Villeneuve. Produção: Lava Bear Films; FilmNation Entertainment; 21 Laps Entertainment; Xenolinguistics. 116 min.

AZPILCUETA NAVARRO. Carta do P. João de Azpilcueta Navarro aos Irmãos de Coimbra, de Porto Seguro, 19 de setembro de 1553. In: LEITE, Serafim (org.). 1940. Novas cartas jesuítas (De Nóbrega a Vieira).  São Paulo/ Rio/ Recife/Porto Alegre: Companhia Editora Nacional. p. 154-159.

BATHE, William. 1611. Janua linguarum siue modus maxime accomodatus, quo patefit aditus ad omnes linguas intelligendas. Salamanca: Francisco de Cea Tesa. 1611. <https://gredos.usal.es/handle/10366/82759>

CONSELHO FEDERAL DE EDUCAÇÃO/CFE. Parecer 283/ 1962. Currículo mínimo e duração dos cursos de Letras.

COVERT Affairs/ Assuntos Confidenciais [Seriado]. 2010-2014. Direção de Jonathan Glassner. Produção: Revenge Venge Films; AmericanZ Studios; New Line Television; Universal Cable Productions.

CROWLEY, Terry. 2007. Field Linguistics: A Beginner’s Guide. Oxford: Oxford University Press.

EBERHARD, David M.; SIMONS, Gary F. &   FENNIG, Charles D. (eds.). 2020. Ethnologue: Languages of the World. Twenty-third edition. Dallas, Texas: SIL International. <http://www.ethnologue.com>.

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles & FRANCO, Francisco Manoel de Mello . 2001-2002. Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Instituto Antônio Houaiss/ Editora Objetiva

JOOS, Martin, ed. 1957. Readings in Linguistics I: The Development of Descriptive Linguistics in America 1925-56. Chicago: The University of Chicago Press, 1971.

ROBINS, R. H. 1967. Linguística geral. Trad. Elizabeth Corbetta A. da Cunha e outros. Porto Alegre: Globo. 1977.

ROSA, Maria Carlota. 1994. Um exemplo de descrição pedagógica no século XVIII: O Specimen linguae brasilicae vulgaris e a tradição jesuítica de ensino de segunda língua. Terceira Margem, 2: 181-189 <http://www.etnolinguistica.org/artigo:rosa-1994>

ROSA, Maria Carlota. 1997. Línguas bárbaras e peregrinas do Novo Mundo segundo os gramáticos jesuítas: uma concepção de universalidade no estudo de línguas estrangeiras. Revista de Estudos da Linguagem, 6 (2): 97-147. DOI: http://dx.doi.org/10.17851/2237-2083.6.2.97-149

ROSA, Maria Carlota. 2010. Introdução à (Bio)Linguística: Linguagem e mente. São Paulo: Contexto.

SCHMID, Monika S. Language Attrition. <https://languageattrition.org/what-is-language-attrition/>


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https://linguisticamcarlotarosa.wordpress.com/?p=15005


Este texto dá início ao material de apoio preparado para minhas turmas de Linguística I durante a pandemia de COVID-19, que levou ao reconhecimento do estado de calamidade pública no país e ao subsequente  fechamento provisório de escolas e faculdades em março de 2020.