Escrita e língua literária no “Curso de linguística geral”

Fig. 1. Da esquerda para a direita: a primeira edição, de 1916, a edição de 1922, base das duas edições brasileiras, de 1972 e de 2021

No Curso de linguística geral — nas palavras de Bagno (2021), a obra de “leitura incontornável” para linguistas, apesar de já transcorridos mais de 100 anos de sua publicação —, Ferdinand de Saussure (1857-1913) defendeu que a linguística deveria estudar a língua, entendida como “o produto social depositado no cérebro de cada um” (Saussure, Curso, Introdução. 6, §1). A escrita — para ele uma representação da língua — ficava de fora dos interesses da linguística. Saussure reconhecia, porém, que a sociedade acaba “por dar maior importância à representação do signo vocal do que ao próprio signo”. E completava: “É como se se acreditasse que, para conhecer alguém, fosse preferível olhar sua fotografia do que seu rosto” (Saussure, Curso, Introdução. 6, §2).

Para Saussure, o prestígio da escrita faz esquecer que o “objeto linguístico” é constituído pela “palavra falada” (Saussure, Curso, Introdução. 6, §2). Mas estamos falando de qualquer texto escrito? Não. Está implícito o conceito de língua padrão.

A língua padrão ou norma padrão refere o ideal de língua “certa” da tradição escolar, as formas contidas e prescritas pelas gramáticas normativas.

Isso porque, em outra parte, Saussure focaliza a língua literária, “não só a língua da literatura, mas, em sentido mais geral, toda espécie de língua cultivada, oficial ou não, a serviço da comunidade por inteiro” (Saussure, Curso, IV. 2, §2).

A língua literária não seria um fato natural (Saussure, Curso, IV. 2, §2). Daí a afirmação de que “a unidade linguística pode ser destruída quando um idioma natural sofre a influência de uma língua literária”. O idioma natural ou local seria um dialeto: “[d]eixada a si mesma, a língua só conhece dialetos, dos quais nenhum se sobrepõe aos outros” (Saussure, Curso, IV. 2, §2). Essa situação muda quando um dialeto é promovido a língua oficial, porque nele se mesclarão “elementos dialetais de outras regiões”, embora não perca totalmente “seu caráter original”.

A linguística saussuriana proporá, então, a “abstração de tudo o que turva a vista da diversidade geográfica para considerar o fenômeno primordial, fora de toda importação de língua estrangeira e de toda formação de uma língua literária. Essa simplificação esquemática parece não fazer jus à realidade, mas o fato natural deve ser primeiro estudado em si mesmo” (Saussure, Curso, IV. 2, §2).

Toda essa parte é perturbadora. Afinal, qualquer forma de expressão linguística seria matéria da linguística, porque

“a matéria da linguística é constituída primeiramente por todas as manifestações da linguagem humana, quer se trate dos povos selvagens ou das nações civilizadas, das épocas arcaicas, clássicas ou de decadência, levando-se em conta, em cada período, não somente a linguagem correta e a ‘boa linguagem’, mas todas as formas de expressão” (Saussure, Curso, Introdução. 2).

Se toda forma de expressão linguística é matéria da linguística, se a linguística proposta por Saussure não tem um objeto dado de antemão (“é o ponto de vista que cria o objeto” – Saussure, Curso, Introdução. 3,§1), se uma língua é um “produto social”, por que proceder a essa “simplificação esquemática”?

SAUSSURE, Ferdinand de. [1922]. Curso de Linguística Geral, organizado por Charles Bally e Albert Sechehaye com a colaboração de Albert Riedilinger. Trad. de A. Chelini, J. P. Paes e I. Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1972.

SAUSSURE, Ferdinand de. [1922]. Curso de Linguística Geral, organizado por Charles Bally e Albert Sechehaye com a colaboração de Albert Riedilinger. Apresentação Carlos Alberto Faraco; Trad. notas e posfácio Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2021.



Comecei a postar neste blogue, ainda em 2020, pequenos textos escritos primariamente para as minhas turmas de Linguística I, que em geral concentram alunos dos cursos de Grego, Latim, Árabe, Hebraico, Japonês e Russo. São, por conseguinte, textos voltados para um aluno recém-saído do Ensino Médio, iniciante na Linguística. As citações nas línguas dos cursos desses estudantes, quando presentes, são propositais.

Esta postagem é parte do material para minhas turmas de Fundamentos da Linguística/ Linguística 1 e, como tal, se junta ao livro Uma viagem com a linguística, com acesso aberto nos formatos pdf e epub em https://linguisticamcarlotarosa.wordpress.com/sobre-2/  e aos materiais na aba “Protegido – Acesso Restrito – Graduação” neste site, cuja senha de acesso é divulgada na primeira aula do período.



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