O linguista marciano

Maria Carlota Rosa UFRJ-Linguística I – 2020-1

Volta e meia, no meio de um texto de Linguística, lá vem um marciano. Há quase um século pelo menos esse ser hipotético aparece na literatura linguística, mas seu papel nem sempre é o mesmo.

O marciano como representação do ideal da metodologia de análise linguística

A menção mais antiga que conheço está estampada na primeira página do famoso Morphology, de Eugene Nida (1914-2011), publicado em 1949. O marciano representava um ideal metodológico:

O analista descritivo deve ser guiado por certos princípios muito consistentes se quiser ser objetivo ao descrever com precisão qualquer língua ou parte de qualquer língua. Seria excelente se ele pudesse adotar em relação a qualquer língua que ele analise e descreva uma atitude completamente marciana (a completely man-from-Mars attitude)“.

Nida prescrevia para o trabalho do linguista a dissociação de categorias conhecidas de outras gramáticas: o linguista não deveria descrever uma língua tendo em mente as categorias de outras línguas; deveria despir-se dessa influência — daí a metáfora do marciano. Atualizava desse modo — para leitores de um período que via desenvolver-se a passos largos a tecnologia que levaria à corrida espacial — a recomendação de que a metodologia não poderia equivaler à cama de Procrusto.

Procrusto é um personagem mítico que matava suas vítimas ou pela amputação das partes do corpo que excedessem o comprimento de sua cama, ou, se fossem indivíduos pequenos, pelo estiramento longitudinal até que ficassem do comprimento da cama. Essa imagem foi utilizada, por exemplo, por Cole (1971: 4), ao tratar de descrições antigas de línguas africanas que tinham por modelo a gramática latina. Em outras palavras: a crítica afirmava que a gramática latina havia funcionado no passado como a cama mitológica, fazendo com que todas as línguas descritas acabassem parecidas com o latim.

O marciano como argumento em favor da GU (ou gramática universal)

Mas de longe parece ter sido Noam Chomsky quem mais recorreu a essa imagem. A menção já aparece em 1971 no famosos debate entre ele e Michel Foucault (1926-1984). A imagem servia de argumento em favor da proposição de uma Gramática Universal (GU): se um marciano observasse a aquisição da linguagem pelas crianças da Terra, que fazem isso do mesmo modo e sem dificuldade com base numa “quantidade de dados ridiculamente pequena“, se esse marciano fosse um ser racional, ele “concluiria que a estrutura do conhecimento que é adquirida no caso da linguagem é basicamente interna à mente humana“.

Numa crítica acerba ao que classifica como artifício retórico na obra chomskyana, o linguista Paul Postal (2019) arrolou vários outros trechos chomskyanos que sustentam que um extraterrestre poderia crer que os terráqueos falam uma única língua com variações superficiais.

O marciano de Chomsky pôde também surgir em resposta a perguntas inusitadas. É o caso da entrevista a John Gliedman em 1983: poderíamos aprender uma língua alienígena, caso entrássemos em contacto com seres extraterrestres?

A resposta de Chomsky foi que “As mesmas estruturas que tornam possível aprender uma língua humana fazem com que nos seja impossível aprender uma língua que viole os princípios da gramática universal. Se um marciano viesse do espaço e falasse uma língua que violasse a gramática universal nós simplesmente seríamos incapazes de aprender essa língua do modo como aprendemos uma língua humana como o inglês ou o suaíle“. Poderíamos aprender essa língua, mas pelo uso de outras capacidades, como, por exemplo, as que usamos ao estudar Física.

Respostas diferentes daquela de Chomsky já foram dadas a essa pergunta, na linha proposta pela linguista e autora de vários livros de ficção científica Suzette Haden Elgin (1936-2015): poderíamos aprender línguas de extraterrestres com corpos classificáveis como humanoides, mas não de outros que fossem fisicamente muito diferentes de nós. A esse respeito, ver a entrevista da linguista Sheri Wells-Jensen,  da direção do METI/Messaging Extraterrestrial Intelligence à Nature.


Uma curiosidade: as tentativas de comunicação com extraterrestres não usaram uma língua natural

De propostas de uso de espelhos a um derivativo do código Morse, o final do século XIX assistiu a uma febre de interesse pela comunicação interplanetária (ver Oberhaus, 2019). Mas o ano de 1974, quando se reinaugurou o Observatório de Arecibo (Porto Rico) — que desabou em dezembro de 2020 — assistiu a um evento marcante: o astrônomo Frank Drake (n. 1930) foi responsável pelo envio de uma mensagem para contactar possíveis civilizações extraterrestres.

Em entrevista a Stephen Johnson, publicada na revista Piauí, Drake explicou como concebeu a mensagem:

O primeiro passo é explicar como sua mensagem deve ser lida, o que em exossemiótica se conhece por primer, “cartilha”. Na Terra, você aponta para uma vaca e diz “vaca”. As placas que a Nasa enviou para o espaço a bordo da Pioneer e da Voyager, por serem objetos físicos, podiam conter informações visuais, o que permitiria a conexão entre as palavras e os objetos a que se referem. Você desenha uma vaca, escreve ao lado a palavra “vaca” e aos poucos uma linguagem se esboça. Objetos físicos, no entanto, não têm como se deslocar a uma velocidade que os transporte a um destinatário potencial numa escala de tempo praticável. Para chegar ao outro lado da Via Láctea, será necessário recorrer a ondas eletromagnéticas.

Como, porém, apontar para alguma coisa com uma onda de rádio? Mesmo que você inventasse um modo de indicar a imagem de uma vaca usando sinais eletromagnéticos, os alienígenas não terão vacas em seu mundo, e o mais provável é que a referência não lhes diga nada. Assim, você precisa pensar muito para encontrar algo que nossos hipotéticos amigos do sistema de Trappist-1 possam ter em comum conosco. Se a civilização deles for avançada a ponto de reconhecer dados estruturados em ondas de rádio, eles devem compartilhar conosco muitos conceitos científicos e tecnológicos. Se forem capazes de receber nossa mensagem, isto significa que sabem detectar perturbações estruturadas no espectro eletromagnético, o que significa um razoável entendimento do que seja o espectro eletromagnético.

O segredo, então, é simplesmente iniciar a conversa. Drake supôs que alienígenas inteligentes possuiriam o conceito dos números naturais: 1, 3, 10 etc. E, se conhecem os números, é bem provável que dominem o resto do que conhecemos como aritmética ou matemática básica: soma, subtração, multiplicação, divisão. Se conhecem a multiplicação e a divisão, hão de entender o conceito de números primos – o número primo é aquele que só é divisível por si mesmo e por 1. (Em Contato, a mensagem alienígena interceptada na Terra começa com uma longa sequência de números primos: 1, 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17, 19, 23…) Muitos objetos no espaço, como os pulsares, emitem sinais de rádio com certa periodicidade: clarões de atividade magnética que surgem e desaparecem a intervalos regulares. Os números primos, contudo, são um sinal que indica vida inteligente. “A natureza nunca emprega números primos”, diz Drake. “Mas os matemáticos sim.”

A mensagem de Arecibo criada por Drake utilizava um parente próximo dos números primos. Ele decidiu enviar exatamente 1 679 pulsos, porque 1 679 é um número semiprimo: só pode ser formado pela multiplicação de dois números primos, no caso 73 e 23. Drake usou esse expediente matemático para transformar seus pulsos de energia eletromagnética num sistema visual. Para simplificar sua abordagem, imagine que você receba uma mensagem composta por dez letras x e cinco letras o: xoxoxxxxoxxoxox. Você percebe que o número 15 é um semiprimo, e organiza os números numa grade de 3 por 5, deixando as letras o (ou zeros) como espaços em branco“.


Referências

Cole, Desmond T. The history of African linguistics to 1945. In: Sebeok, Thomas A. (ed.). 1971. Current trends in linguistics. v.7: Linguistics in Sub-Saharan Africa. The Hague/Paris: Mouton. 1971. p. 1-29.

GLIEDMAN, J & CHOMSKY, N. 1983. Things No Amount of Learning Can Teach. Chomsky interview with John Gliedman. November 1983.  https://chomsky.info/198311.

JOHNSON, Steven. 2017. E.T., Saudações. Revista Piauí, 134. 11/2017. https://piaui.folha.uol.com.br/materia/e-t-saudacoes/

NIDA, Eugene. 1949. Morphology: The Descriptive Analysis of Words. Ann Arbor: The University of Michigan Press.

OBERHAUS, Daniel. 2019. Extraterrestrial Languages. Cambridge, Mass.: The MIT Press.

POSTAL, Paul M. 2019. Chomsky’s One Language/Extraterrestrial Scientist Claims. LINGBUZZ/004735. Disponível em https://ling.auf.net/lingbuzz/004735

[O linguista marciano] [Um linguista em Marte]


Face aos desafios das aulas presenciais na graduação durante a pandemia, comecei a postar neste blogue, a partir de 2 de outubro de 2020, pequenos textos escritos primariamente para minhas turmas de Linguística I, que em geral concentram alunos dos cursos de Grego, Latim, Árabe, Hebraico, Japonês e Russo.. São, por conseguinte, textos voltados para um aluno recém-saído do Ensino Médio, iniciante na Linguística num momento muito difícil nas vidas de todos.

Há tantos anos trabalhando com as turmas de calouros — isto é, alunos recém-saídos do Ensino Médio, iniciantes em linguística e na universidade —, decidi produzir e reunir pequenos textos que pudessem vir a aumentar o interesse desses jovens por linguística. Meu objetivo é, de um lado,  demonstrar que nosso trabalho é bem mais interessante do que a ideia generalizada de que apenas procuramos (ou deveríamos procurar) onde estão os erros numa frase — isto é, demonstrar que nosso trabalho não é (nem deveria ser) o reforço  para  o reducionismo de um mundo intolerante com a variação linguística; de outro,  aproveitar as expectativas positivas  em relação ao curso escolhido que se inicia. É essa a ideia do Meu Magazine de Linguística. Todos os textos estão reunidos em https://linguisticamcarlotarosa.wordpress.com/meu-magazine-de-linguistica/ .



Descubra mais sobre Linguística - M.Carlota Rosa

Assine para receber os posts mais recentes por e-mail.

2 comentários sobre “O linguista marciano

Deixe um comentário