As línguas afro-brasileiras

Maria Carlota Rosa – UFRJ – Linguística I – 2021-1 REMOTO

Imagem:  Cartaz abolicionista britânico que ilustrava como o navio negreiro Brookes conseguia empilhar 454 indivíduos, usadas as medidas aprovadas pela Lei do Tráfico de Escravos de 1788, isto é, 6 pés por 1 pé e 4 polegadas para cada homem (cerca de 1,82m por 40,5 cm) em prateleiras com 2 pés e 7 polegadas de altura (cerca de 78 cm).O desenhista conseguiu colocar 400 pessoas na imagem. Antes da referida lei, a mesma embarcação chegou a transportar mais de 600 escravos. Imagem extraída de Wikipedia, "Brooks (1781 ship)". 

LÍNGUAS AFRO-BRASILEIRAS: línguas de origem africana faladas no Brasil. Essas línguas apresentam notáveis diferenças linguísticas em vários aspectos de sua estrutura gramatical, produzidas por mudanças históricas desencadeadas pelo contato com o Português, podendo ter ocorrido transferências gramaticais desde esse substrato africano (LUCCHESI et al., 2009). Exemplos: Gíria de Tabatinga, língua do Cafundó e variedades Afro-brasileiras do Português Rural (IPHAN, 2016: 13).

Ainda no século XVI tem início o tráfico de escravizados africanos para o Brasil. Até a Abolição, em 1888, estima-se que o Brasil tenha recebido cerca de 4 milhões e meio de indivíduos (Reis, 2007: 82), que foram aos poucos substituindo a escravidão indígena como força de trabalho .

Negros de Guiné, congos, angolas, moçambiques, minas … qual a origem das vítimas desse comércio?

No século XVI e mesmo em mapas do século XVIII a Guiné englobava regiões do litoral africano também conhecidas como Costa da Pimenta, Costa do Marfim, Costa do Ouro e Costa dos Escravos. No Brasil, porém, negro de Guiné (ou peça de Guiné) não foi uma designação para informar a origem do escravizado, mas uma expressão que significou escravo (Oliveira, 1997: 40).

Extraído de PARÉS, Luís Nicolau (org.). Práticas religiosas na Costa da Mina. Uma sistematização das fontes europeias pré-coloniais, 1600-1730. Disponível em http://www.costadamina.ufba.br/

Durante os Séculos XVI, XVII e primeira metade do Século XVIII, os chefes políticos e mercadores da África Centro Ocidental, em particular o território presentemente ocupado por Angola, forneceram a maior parte dos escravos utilizados em todas as regiões da América portuguesa. Enquanto durou o tráfico transatlântico, importantes áreas importadoras, como o Rio de Janeiro, Recife e São Paulo continuaram se abastecendo sobretudo de escravos vindos dali e, mais tarde, da contra-costa africana, particularmente Moçambique. Eram povos aqui denominados de congos, angolas, benguelas, cabindas, cassanges, monjolos, rebolos, moçambiques e outros. Os chamados angolas — estes em geral traficados através do porto de Luanda — e benguelas — estes traficados através de entrepostos situados mais ao sul da atual Angola — vieram a predominar nas levas do comércio oitocentista, em especial os que desembarcavam no Rio de Janeiro.

Os traficantes envolvidos no comércio baiano, por outro lado, a partir de meados do Século XVII, e até o fim do tráfico, foram se especializando cada vez mais na região do Golfo do Benin (sudoeste da atual Nigéria), de onde importaram escravos aqui denominados dogomés, jejes, ussás, bornos, tapas e nagôs, entre outros. Estes últimos vieram a constituir as vítimas preferenciais dos 20 anos finais do tráfico baiano, o período do comércio ilegal.” (Reis, 2007:82)

Linguisticamente as línguas dos cativos pertenciam ao nigero-congolês, a maior família linguística daquele continente. Dos seis ramos dessa família, dois se destacaram nos contingente trazidos para o Brasil: o benue-congo, que inclui o sub-grupo banto, e o kwa.

Por Niger-Congo.svg: KimdimeNiger-Congo_map.png: Ulammderivative work: Monsieur Fou (talk) – Niger-Congo.svgNiger-Congo_map.png, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=15148741

Embora bom número desses cativos pudesse ter sido capturado em regiões distantes do porto em que viriam a ser embarcados, no Brasil as zonas de embarque levaram à classificação tradicional bipartida em:

a) bantos, os que vinham da costa da África Central e da contra-costa;

b) sudaneses, os que vinham da África Ocidental, dentre eles destacando-se, pelo número, “os de língua iorubá e do grupo ewe-fon, pertencentes à família linguística kwa” (Castro, 2002: 43).

Também inserida entre as línguas “sudanesas”, embora de outra família linguística, o afro-asiático, estava o hauçá.

Yeda Pessoa de Castro (2002) estabeleceu um quadro das áreas de predominância de cada um desses grupos no Brasil ao longo dos séculos.

Castro (2002: 45) – Esboço de mapa etnológico africano no Brasil

Registros dessas línguas

São poucos os registros das línguas africanas que foram faladas no Brasil e que chegaram aos dias atuais. É o caso da Arte de Pedro Dias e dos manuscritos de Costa Peixoto.

Arte da língua de Angola

A obra mais famosa é uma gramática escrita na Bahia pelo jesuíta Pedro Dias (1621-1700) intitulada a Arte da lingua de Angola, publicada em Lisboa em1697.

Sobre o termo arte, voltar a “Gramática: uma arte?“.

O título é um tanto enigmático se o leitor levar em conta o mapa atual, porque a atual República de Angola tem cerca de quatro dezenas de línguas segundo o Ethnologue. Então, que artigo definido é aquele no título, como se houvesse apenas uma língua?

É que o mapa era outro e ainda não existia uma República de Angola. Naquela Angola, porém, estava Luanda, o maior porto negreiro do Atlântico no século XVII — o que conferia àquela língua importância numa economia escravagista. Aquela era uma região Mbundu; a língua descrita era o Kimbundu. Banto, portanto.

Os manuscritos de Costa Peixoto

Dois manuscritos de Antonio da Costa Peixoto (1703–1763), escritos em Minas Gerais, constituem outro material importante para o conhecimento do mapa linguístico do Brasil. Um deles data de 1731, Alguns apontamentos da lingua Minna; o outro, de 1741, é a Obra nova da língua geral de mina. Aryon Rodrigues dedicou-se a esse material, em parceria com Lucien Akabassi, falante de Fon, então na Unicamp, afirmando que

“pelo menos 90% dos dados do manual de Costa Peixoto foram imediatamente reconhecidos, não só os vocábulos soltos, mas igualmente as sentenças, de modo a não deixar dúvidas de que a língua em questão pertence ao complexo dialetal Ewe, e coincide sobretudo com o Fõ. Algumas formas divergem e se identificam com um ou outro dialeto, ora com o Mahi, ora com o Gum. Correia Lopes, no seu estudo, também identificou a língua de Mina de Costa Peixoto com o Ewe, inclinando-se a ver nele o dialeto Gum, o que é reforçado pelo termo dado no manual para traduzir “gente mina” — guno, isto é gu-nu ‘pessoa do povo Gum’. Os gunu habitam a região costeira da República Popular do Benim, onde fica a capital Porto Novo. O Fõ é, entretanto, a língua africana dominante no território da república […]. Como esses dois dialetos do Ewe são muito próximos tanto na fonologia como na gramática, como no léxico, e também pouco difere do Angló [….], que é o Ewe falado em Gana e no Togo, não é fácil decidir a qual dos dois dialetos corresponde mais exatamente a língua Mina de Minas Gerais. Note-se, ainda, que o nome Mina é, na África, um dos sinônimos pra o dialeto Guem [….]. É possível, entretanto, que no Brasil o termo tenha sido usado, como tem sido frequentemente considerado, para designar coletivamente os africanos (“negros Mina”) embarcados na Costa da Mina ou mais especificamente no Forte de El Mina”.

Mais recentemente, Sônia Queiroz (2019) identificou “registro impresso, sonoro ou em vídeo” de remanescentes de línguas africanas do grupo banto em 11 comunidades negras:

  • Tabatinga (Bom Despacho),
  • Calunga (Patrocínio),
  • Catumba (Itaúna),
  • Jatobá (Belo Horizonte),
  • Arturos (Contagem),
  • Matição ou Mato do Tição (Jaboticatubas),
  • Milho Verde (Serro),
  • Quartel do Indaiá e São João da Chapada (Diamantina),
  • Fagundes (Santo Antônio do Amparo)
  • Oliveira.

E na atualidade?

Além da influência sobre o português, uma consulta ao Ethnologue nos dá como resultado apenas o crioulo do Cafundó, com 40 falantes — quase extinto, portanto. Não há menção à gira da Tabatinga.

Passados três séculos da chegada às Minas dos primeiros africanos e seus descendentes nascidos na América, trazidos para o trabalho forçado nas minas de ouro e pedras preciosas no século XVIII, as línguas africanas mais faladas aqui – o quimbundo, o quicongo e o umbundo – se restringem hoje a fragmentos: linguagem ritual em algumas comunidades quilombolas, versos e palavras soltos em alguns cantos do repertório das festas de N. S. do Rosário e do candombe (que se realiza também fora do âmbito da festa do Rosário).
Em terreiros de candomblé, na Bahia, Yeda Pessoa de Castro constatou o que ela designou competência simbólica: o povo de santo que canta em iorubá conhece o sentido do canto, sua inserção ritual, mas não conversa em iorubá. Trata-se de uma língua ritual, de uso restrito, que não se utiliza para fins de comunicação cotidiana. (Queiroz, 2019: 12)

Referências

CASTRO, Yeda Pessoa de. 2002. A língua mina-jeje no Brasil: um falar africano em Outro Preto do século XVIII. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro/ Secretaria de Estado da Cultura.

Dias, Pedro, S.J. Arte da lingva de Angola,/ oeferecida [sic]/ a Virgem Senhora N. do/ Rosario, Mãy, & Senhora dos mesmos/ Pretos. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes,  Impressor de Sua Magestade. Anno 1697. https://archive.org/details/artedalinguadean00dias

IPHAN/Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 2016. Guia de Pesquisa e Documentação para o INLD [ Inventário Nacional da Diversidade Linguística]. 1 – Patrimônio cultural e diversidade linguística. Brasília, DF: IPHAN. http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/INDL_Guia_vol1.pdf

OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. 1997. Quem eram os” negros da Guiné? A origem dos africanos na Bahia. Afro-Ásia, 19-20: 37-73. https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/download/20947/13550

Peixoto, Antonio da Costa. Obra nova de língua geral de mina de Antonio da Costa Peixoto. Manuscrito da Biblioteca Pública de Évora. Publicado e apresentado por Luís Silveira. Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1944.

QUEIROZ, Sônia. 2019. Palavra banto em Minas. Belo Horizonte: Editora UFMG.

REIS, João José. 2007. Presença negra: conflitos e encontros. In: IBGE, IBGE, Centro de Documentação e Disseminação de Informações. Brasil: 500 anos de povoamento. Rio de Janeiro : IBGE, 2007. p. 79-100. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv6687.pdf

Rodrigues, Aryon Dall’Igna. 2003. Obra nova da língua geral de mina” : a língua ewe nas Minas Gerais.  PAPIA: Revista Brasileira de Estudos Crioulos e Similares, 13: 92-96. https://repositorio.unb.br/handle/10482/9761


Face aos desafios das aulas presenciais na graduação durante a pandemia, comecei a postar neste blogue, a partir de 2 de outubro de 2020, pequenos textos escritos primariamente para minhas turmas de Linguística I, que em geral concentram alunos dos cursos de Grego, Latim, Árabe, Hebraico, Japonês e Russo. São, por conseguinte, textos voltados para um aluno recém-saído do Ensino Médio, iniciante na Linguística num momento muito difícil nas vidas de todos.


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