“Língua” num mundo de migrações: os decasséguis retornados e seus filhos

Ainda em 2020, com o ensino tornado remoto em razão da pandemia que assolava o mundo, este blogue passou a ser um instrumento para apresentar material de apoio para as minhas turmas de Linguística I-Fundamentos da Linguística, constituídas, em geral, por calouros dos cursos de Árabe, Hebraico, Japonês, Latim e Russo. Apesar do retorno ao ensino presencial em abril de 2022, o blogue continuou com essa nova função.
Ao longo deste primeiro semestre letivo de 2023 foi gratificante, como professora, acompanhar o empenho dos alunos desses cursos, reunidos todos num grande auditório na minha disciplina. O empenho materializou-se nas avaliações.
A presente postagem segue com o compartilhamento de uma pequena série de trabalhos que recebi como parte da avaliação da disciplina.
O trabalho a seguir teve como autor um aluno da UFRJ, mas de Ciências da Computação, aluno regular dessa turma da Faculdade de Letras.

ANDRADE, Daniel Kiyoshi Hashimoto Vouzella de. 2023. “Língua” num mundo de migrações: os dekasseguis retornados e seus filhos. Trabalho da disciplina LEF140 / Fundamentos da Linguística. Rio de Janeiro: UFRJ/ Faculdade de Letras.


“Língua” num mundo de migrações: os decasséguis retornados e seus filhos

Daniel Kiyoshi Hashimoto Vouzella de ANDRADE

0. Antes de tudo

A palavra dekassegui/ decasségui vem do japonês 「出稼ぎ」, usado para se referir à ação de uma pessoa sair (significado do “radical” 出) do seu local de origem, antigamente uma província ou agora um país, à procura de trabalho ou de ganhar dinheiro (significado do verbo 稼く). Hoje em dia, essa palavra, quando atribuída a uma pessoa, pode ser traduzida como ‘emigrante trabalhador’ ou ‘trabalhador nômade’. Já aqui no Brasil, um dekassegui é um brasileiro que sai do Brasil para o Japão buscando trabalhar.

Logo no prefácio do estudo de Resstel [1], o livro ressalta que as experiências dos migrantes são heterogêneas, assim como suas características, que variam desde a motivação, idade, conhecimento da língua e cultura, quem vai junto – pode-se ir sozinho, com a família inteira ou com apenas parte dela – até a legalidade da migração. Considerando essa enorme variação entre os dekasseguis, é inaceitável pensar que a situação de seus filhos seja homogênea. Por isso, não é razoável dizer o que vai acontecer, as respostas podem ser diferentes para pessoas diferentes, como no caso das filhas do sr. Ito, por exemplo. Ambas cresceram no Japão, mas, quando “retornam” ao Brasil, a caçula se adapta melhor e acaba aprendendo português, enquanto a mais velha ainda tem grandes dificuldades com a nova língua. No lugar de dizer o que vai acontecer, serão descritas algumas situações e, em seguida, o que se espera que aconteça a partir de cada uma delas.

A palavra koronia-go vem de 「コロニア語」, que é a junção de コロニア(/koronia/) — empréstimo da palavra portuguesa ‘colônia’ (observe que o mais próximo do som de /lo/, no japonês é o som de /ro/) — com o sufixo 語(nesse caso: /go/), usado para dizer a língua de um local, por exemplo em 「日本語」(/nihongo/, 日本significa Japão) ou 「ポルトガル語」(/porutogarugo/, ポルトガルsignifica Portugal). Dessa forma, koronia-go teria como tradução ‘a língua da Colônia’1. Essa língua, brevemente descrita na seção 5.9 de [2], é uma variedade do japonês com forte presença de palavras aportuguesadas, falado geralmente por nisseis e sanseis (descendentes de japoneses de segunda/terceira geração — filhos/netos) que cresceram no Brasil.

Comparativamente, o koronia-go se assemelha ao pequeno “dialeto” com que alguns jovens conversam entre si, no qual se usa o português misturado com estrangerismo vindo de jogos eletrônicos, muitas vezes incompreensível para pessoas mais velhas. São exemplos:

  • Eu não tanko ficar esse tempo todo na academia;
  • Ela givou o namorado para ficar estudando para a prova;
  • O menino só spawnou do meu lado; eu tomei um susto;
  • A: Cadê o seu amigo? B: Ele foi de base.

Mesmo existindo palavras ou expressões inteiramente do português que expressam o mesmo significado, os falantes acabam preferindo as versões alternativas por serem mais familiares. Nesses contextos, o verbo tanko poderia ser substituído por ‘aguento’ ou ‘suporto’ [3] [4]; givou por ‘abriu mão [de estar com]’; spawnou por ‘apareceu’, ‘surgiu’ ou ‘brotou’ [5] [6]; foi de base por ‘foi embora’, ‘não está mais aqui’ ou ‘está ocupado (fazendo outra coisa)’ [7] [8] [9]. Dessas gírias a mais famosa é tankar. Observa-se que elas não são compartilhadas por todos os jovens, da mesma forma que o koronia-go não é compartilhado por todos os descendentes nipônicos.

1. Português como língua materna

Considerando as crianças muito pequenas que foram para o Japão antes de aprender a falar português, podemos apontar dois casos baseados na língua em que os pais decidem se comunicar com a criança: japonês e português. O primeiro torna-se bem natural para os pais, já prevendo que seu filho vai interagir com crianças e adultos japoneses, muito provavelmente vai frequentar uma escola japonesa e assim por diante. Com essa decisão, não haveria um momento em que a criança praticaria o português; portanto ela nem aprenderia o português e, assim, o português não teria nenhuma chance de ser sua língua materna.

Mesmo que a primeira escolha possa parecer muito atraente, a segunda não é impossível: muitos dekasseguis chegam ao Japão sem dominar o japonês ou, mesmo que o dominem, podem planejar voltar para o Brasil num futuro próximo. Nessa situação, o resultado vai depender bastante de o que acontecer durante o desenvolvimento da criança. Se crescer num ambiente japonês – escolas, vizinhos e colegas falando em japonês – apenas no melhor dos casos o português vai ter características de uma língua de herança e ela teria o japonês como outra primeira língua (L1).

Também pode crescer imersa num “ambiente brasileiro”: existem comunidades e até bairros cheios de brasileiros [10] [11] [12] [13] [14] [15]. Dessa forma, dependendo da intensidade desse ambiente, a criança pode-se comportar: (a) igual ao último caso;  (b) ter o português como língua materna enquanto sabe pouco ou nada de japonês; (c) ser bilíngue, falando ambas as línguas de forma nativa; ou  (d) com uma mistura desses resultados. Como exemplos: (a) em [13] há fragmentos em que o filho compreende a mãe falando em português mas responde em japonês; (b) num outro vídeo da mesma família [16], percebe-se que o pai fala em japonês, mas em nenhum desses dois vídeos o filho falou algo em português, dando a entender que sua situação se parece mais com uma mistura do primeiro caso com o segundo num ambiente japonês.

2 Koronia-go (コロニア語) e os filhos de dekasseguis

As crianças que aparecem nas entrevistas realizadas no estudo de Resstel [1] tinham pouco ou nenhum conhecimento do português e tinham contato majoritariamente, se não exclusivamente, com falantes de japonês. No Japão, elas não tinham motivo para falar ou saber koronia-go.

Quando retornaram (ou vieram) ao Brasil, todas elas tiveram de aprender português. Lembrando que koronia-go é uma língua marcada pela mistura de palavras do português à gramática e língua japonesa, é inimaginável pensar que essas crianças conseguiriam falar essa variedade do japonês. Uma situação mais provável seria que elas, após aprenderem um pouco da língua, falassem português completando o vocabulário desconhecido com palavras já conhecidas do japonês, dado que a língua dominante delas é o japonês.

NOTAS

1“Colônia” aparece capitalizada, pois se referencia à Colônia japonesa no Brasil, diferente de uma colônia japonesa em um outro lugar.

Referências

[1] RESSTEL, C. C. F. P. Desamparo psíquico nos filhos de dekasseguis no retorno ao Brasil. São Paulo: Editora UNESP/São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015. Disponível em https://books.scielo.org/id/xky8j. Acessado em 24/06/2023.

[2] ROSA, M. C. Uma viagem com a linguística: um panorama para iniciantes. São Paulo: Pá de Palavra, 2022. Disponível em https://linguisticamcarlotarosa.wordpress.com/sobre-2. Acessado em 24/06/2023.

[3] START. O que é “tankar”? Entenda a gíria das redes sociais que veio do eSport. Disponível em https://uol.com.br/start/ultimas-noticias/2022/03/09/o-que-e-tankar-entenda-a-giria-das-redes-sociais-que-veio-do-esport.html. Acessado em 25/06/2023.

[4] Wiktionary. tankar. 2023. Disponível em https://pt.wiktionary.org/wiki/tankar. Acessado em 25/06/2023.

[5] Dicionário inFormal. Spawnar. 2022. Disponível em https://dicionarioinformal.com.br/spawnar. Acessado em 25/06/2023.

[6] Wiktionary. spawnar. 2023. Disponível em https://pt.wiktionary.org/wiki/spawnar.Acessado em 25/06/2023.

[7] cafeopoliglota. O que siginifica “foi de base”? 2020. Disponível em https://br.hinative.com/questions/17872044. Acessado em 25/06/2023.

[8] Wiktionary. ir de base. 2023. Disponível em https://pt.wiktionary.org/wiki/ir_de_base. Acessado em 25/06/2023.

[9] Dicionário inFormal. Ir de base. 2023. Disponível em https://dicionarioinformal.com.br/ir%20de%20base. Acessado em 25/06/2023.

[10] BRETAS, A. Japão: Conheça quantos, onde e como vivem os imigrantes brasileiros no outro lado do mundo. 2004. Disponível em http://verdestrigos.org/sitenovo/site/cronica_ver.asp?id=366. Acessado em 24/06/2023.

[11] HIRO. Escolas brasileiras no Japão. 2022. Disponível em https://whatsjap.com/escolas-brasileiras-no-japao. Acessado em 24/06/2023.

[12] KAWANAMI, S. Conheça as 10 regiões mais “brasileiras” do Japão. 2015. Disponível em https://japaoemfoco.com/conheca-as-10-regioes-mais-brasileiras-do-japao. Acessado em 24/06/2023.
[13] SANTANA, C. Japão – Nagoya – Como é meu bairro no Japão? 2022. Disponível em https://youtu.be/OW614EdrQI0. Acessado em 24/06/2023.

[14] FERREIRA, F. Bairro de brasileiros no Japão! 2020. Disponível em https://youtu.be/HpPFTZUBXC8. Acessado em 24/06/2023.

[15] BBC News Brasil. Conheca a ‘cidade brasileira’ no Japão. 2015. Disponível em https://youtu.be/dhoHpjp5720. Acessado em 24/06/2023.

[16] SANTANA, C. O melhor lamen do Japão. 2023. Disponível em https://youtu.be/Qdix90WKe6A. Acessado em 24/06/2023.


Relacionados



Descubra mais sobre Linguística - M.Carlota Rosa

Assine para receber os posts mais recentes por e-mail.