Definindo língua. 2.1 A revitalização de uma visão antiga: introduzindo a língua-I e a língua-E

Maria Carlota Rosa – UFRJ – Linguística 1 – 2020-1

Para David Lightfoot, a gramática gerativa revitalizou uma visão de língua que estava esquecida nas primeiras décadas do século XX. Essa visão mais antiga e então abandonada está presente, por exemplo, no clássico de Wilhelm von Humboldt (1767-1835) Über die Verschiedenheit des menschlichen Sprachbaues und ihren Einfluss auf die geistige Entwickelung des Menschengeschlechts [‘sobre a diversidade da estrutura da linguagem humana e sua influência no desenvolvimento espiritual da raça humana’], publicado postumamente, em 1836. Lightfoot (2006:7) destaca alguns trechos desse texto do linguista, filósofo e fundador da Universidade de Berlim, e trazemos um deles a seguir :

Portanto, [uma língua] …. não pode realmente ser ensinada, mas deve ser despertada na mente. Só o fio pelo qual se desenvolve automaticamente pode ser oferecido. Embora as línguas sejam no sentido inequívoco da palavra […] criações de nações, elas ainda permanecem criações pessoais e independentes de indivíduos (Humboldt, [1836] 1971: 22).

É na dicotomia nação-indivíduo — isto é, na divisão entre uma perspectiva em que uma língua é um produto social e outra, em que é um estado da mente do indivíduo — que Lightfoot vai buscar a origem da distinção chomskyana entre Língua-E(xterna) e Língua-I(ndividual, interna), distinção assim nomeada em Chomsky (1986).

A língua-E

A língua-E ou língua externa é amorfa, não um sistema. É a língua que está lá fora, no mundo e inclui os tipos de coisas que uma criança pode ouvir” (Lightfoot, 2006:12). É um somatório dos usos das línguas internas dos diferentes indivíduos de uma comunidade; é externa porque independe das propriedades da mente/cérebro (Chomsky, 1986: 20) .

A língua-I

A língua interna, ou língua-I, ou gramática é o conhecimento linguístico sistemático que começará a emergir na mente da criança com a exposição, a partir de seu nascimento, a dados linguísticos primários (ou DLP, nome técnico para referir o que ela ouve, no caso de línguas orais). Essa exposição é indispensável para que a criança desenvolva o que virá a ser a sua língua — ou gramática.

Consequentemente, língua-I e língua-E interagem: se muda o que uma criança ouve, muda a gramática internalizada; se muda a gramática, o que se diz ficará diferente (Lightfoot, 2006:13)

O conhecimento linguístico a ser alcançado não pode ser explicado, porém, apenas pela exposição aos dados linguísticos primários: afinal, como podemos saber tanto da nossa língua com base em dados tão caóticos? Como uma criança ouve frases incompletas em conversas interrompidas por alguma razão (Só queria dizer .. que… ; Olha, amanhã... ) e não as transforma em modelos de construção de frases em português? E como podemos dizer e entender frases que nunca ouvimos antes, isto é, que não fazem parte de nossa experiência linguística prévia?

Os DLP são um tipo de informação positiva, mas não importa o quanto ouvimos: os DLP não permitem afirmar que algo que não ocorre nesse conjunto de dados é um enunciado impossível naquela língua. Como chegamos a saber que não se pode dizer algo como *João se barbeou Pedro? O fato de essa construção não constar dos DLP não implica necessariamente que ela não pode ser gerada pela gramática do português que cada um de nós internalizou. Mas sabemos que não pode.

A Gramática Gerativa considerou o descompasso entre o que sabemos da nossa língua e a experiência linguística esparsa, assistemática (a língua-E) como um argumento em favor da postulação do inatismo da gramática universal: o argumento da pobreza do estímulo. Se o conhecimento não pode ser aprendido diretamente da experiência (afinal, ninguém diz frases do tipo do exemplo marcado com asterisco e as etiqueta com algo como “nunca diga” ) é porque a informação está disponível de outro modo. Em outras palavras: os DLP não fornecem à criança informação negativa, isto é, a informação de que determinadas construções não existem na língua alvo, e por vezes em língua alguma — as construções que assinalamos com um asterisco. Apenas pela exposição aos dados não haveria como decidir que *João se barbeou Pedro não é uma frase gramatical em português. A intuição linguística de falante nativo que permite julgamentos de (a)gramaticalidade deriva do conhecimento linguístico internalizado.

Sugestão de leitura sobre a intuição na Gramática Gerativa: Monteiro (2020).

Mas e as correções que os pais fazem?

Parece que nem sempre a criança entende a que se aplica a correção. Um exemplo.

Mãe  − A  Júlia já  pegou sua canequinha?

Júlia (mostrando a caneca)  − Meu canequinha.

Mãe  − Não, Júlia. Minha canequinha.

Júlia −É seu?!

(Exemplo em Rosa, 2010)

A hipótese gerativa é que a faculdade da linguagem, em seu estágio inicial, é inata, faz parte da dotação genética de todos os seres humanos. O estágio inicial do processo de aquisição, ou gramática universal (ou GU), com que todo ser humano nasce, comum a todos e sem variação, afora patologias (Chomsky, 1986: 18), passa por vários estágios até o estágio final ou gramática, no adulto.

A GU é um “sistema de condições derivado da dotação biológica humana que identifica as línguas-I que são humanamente acessíveis em condições normais” (Chomsky, 1986: 23).

Na teoria gerativa, o foco se volta para a língua-I, para o conhecimento linguístico, não para a interação social, representada na língua-E.

A proposta chomskyana do inatismo da linguagem surgiu como contraponto a uma visão bastante difundida em meados do século XX. O psicólogo norte-americano B. F. Skinner (1904-1990) em seu Comportamento Verbal, livro inicialmente publicado em 1957, propunha que o domínio de uma língua estava ligado à história de reforços, prêmios e punições em relação ao que já se disse; e aos estímulos no ambiente: um quadro com tons de vermelho, por exemplo, serviria de estímulo para que disséssemos “vermelho”.


Referências

CHOMSKY, Noam. 1986. Knowledge of Language. Its Nature, Origin, and Use. New York: Praeger.

Lightfoot, David. 2006. How new languages emerge. Cambridge: Cambridge University Press.

Monteiro, Beatrice. 2020. Confie na sua intuição: como a intuição do falante fundamenta análises da língua. Roseta, 3 (2). http://www.roseta.org.br/pt/2020/09/09/confie-na-sua-intuicao-como-a-intuicao-do-falante-fundamenta-analises-da-lingua/

Rosa, Maria Carlota. 2010. Introdução à (Bio)Linguística: linguagem e mente. São Paulo: Contexto.

Von Humboldt, Wilhelm. 1836. Linguistic Variability and Intellectual Development [Über die Verschiedenheit des menschlichen Sprachbaues und ihren Einfluss auf die geistige Entwickelung des Menschengeschlechts]. Trad . George C. Buck and Frithjof A. Raven. Coral Gables, Florida: University of Miami Press, 1971.


Face aos desafios das aulas não presenciais na graduação, comecei a postar neste blogue, a partir de 2Out2020, pequenos textos dirigidos primariamente a minhas turmas de Linguística I. São, por conseguinte, textos voltados para um aluno iniciante na Linguística e no primeiro semestre do curso de Letras.



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