A arbitrariedade do signo linguístico no “Curso de linguística geral”

Maria Carlota Rosa – UFRJ – Linguística I/ Conceito de linguística + Breve história da linguística – 2023-2

O Curso de linguística geral (doravante CLG) é um livro ímpar por várias perspectivas. Não foi escrito por aquele a quem é atribuído, isto é, não foi escrito por Ferdinand de Saussure (1857-1913). Seus editores — Charles Bally (1865-1947) e Albert Sechehaye (1870-1946) — responsáveis pela materialização desse livro levantam a hipótese, no prefácio à primeira edição, de que o próprio Saussure, se ainda vivo fosse, “não teria talvez autorizado a publicação”. O CLG é ímpar também na importância para o desenvolvimento da linguística ao longo do século XX.

A língua (ou langue) se constitui no foco do interesse de sua proposta de uma ciência linguística. Para Saussure a língua é “uma instituição social”, “um sistema de signos que exprimem ideias”. A linguística seria parte da semiologia, “uma ciência que estude a vida dos signos no seio da vida social” (Saussure, CLG, Introdução,3,§3).

O signo linguístico é “uma entidade psíquica de duas faces”, que “não une uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica”, ambos “unidos, em nosso cérebro, por um vínculo de associação” (Saussure, CLG, 1a.Parte, 1. §1).

Fig.1. A estrutura do signo
Fonte: CLG

A imagem acústica não é um conjunto de sons ou fonemas, mas “a impressão psíquica desse som”; afinal, “sem movermos os lábios nem a língua, podemos falar conosco ou recitar mentalmente um poema” (Saussure, CLG, 1a.Parte, 1. §1). Mais adiante, o CLG propõe substituir conceito por significado; imagem acústica por significante.

O signo é a união indissociável e arbitrária entre um significante e um significado. As flechas nas famosas imagens no CLG enfatizam que a relação entre esses dois termos forma “um domínio fechado existente por si próprio” (Saussure, CLG, 2a Parte, 4, §2) e não entre o signo e a realidade.

A relação entre esses dois termos não é universal (porque se estabelece num dado sistema) e também não é natural (na medida em que não há um laço entre significante e significado que seja exigido por alguma razão na realidade circundante).

Em razão de a relação entre esses dois termos (o significado e o significante) formar “um domínio fechado existente por si próprio”, a arbitrariedade ganha um desdobramento, representado em mais um dos famosos diagramas do CLG, reproduzido na figura 2 a seguir.

Fig. 2. “O signo é a contraparte dos outros signos da língua”.
Fonte: CLG

“O que haja de ideia ou de matéria fônica num signo importa menos que o que existe ao redor dele nos outros signos” (Saussure, CLG,2a Parte, 4 §4). E exemplifica:

“O francês mouton (‘carneiro”) pode ter a mesma significação que o inglês sheep, mas não o mesmo valor [….] ao falar de um pedaço de carne preparada e servida à mesa, o inglês diz mutton e não sheep. A diferença entre sheep e mutton se deve a que o primeiro tem a seu lado um segundo termo, o que não é o caso para a palavra francesa” (Saussure, CLG,2a Parte, 4 §2).

Cita-se aqui a explicação em Flores (2022: 96): “O termo arbitrário significa, no contexto saussuriano, a ausência de causa, quer dizer, não há causa que justifique que este ou aquele significante esteja unido a este ou aquele significado”.

“Assim, a ideia de irmã não está ligada por nenhuma relação interna à sequência de sons [i]-[r]-[m]-[ã] que lhe serve de significante; este poderia ser igualmente bem representado por qualquer outra sequência: prova disso são as diferenças entre as línguas e a existência mesma de línguas diferentes. O significado de boi tem como significante em francês [b]-[œ]-f, enquanto em alemão é [ɔ]-[k]-[s] (Ochs).” (Saussure, CLG, 1a Parte, 1, §2).

Essa relação no interior do signo não se estabelece a cada uso, a bel prazer do falante, fugindo ao que os demais membros da comunidade linguística conhecem e compartilham (ou quem poderia entender seus enunciados?). “A palavra arbitrário requer também uma observação. Não deve dar a ideia de que o significado dependa da livre escolha do que fala” (Saussure, CLG, 1a Parte, 1, §2). Cabe enfatizar: a língua é coletiva e esse conhecimento partilhado serve de base ao uso de cada indivíduo, ou parole.

A relação significante-significado é sempre arbitrária considerado o signo em isolado, i.e. , fora de um sistema. O CLG frisa, porém, que “o signo pode ser relativamente motivado” (Saussure, CLG, 2a. Parte, 6, §3). E exemplifica:

Assim, vinte é imotivado, mas dezenove não o é no mesmo grau, porque evoca os termos dos quais se compõe e outros que lhe estão associados, por exemplo, dez, nove, vinte e nove, dezoito, setenta etc.; tomados separadamente, dez e nove estão nas mesmas condições que vinte, mas dezenove apresenta um caso de motivação relativa. O mesmo acontece com pereira, que lembra a palavra simples pera e cujo sufixo –eira faz pensar em cerejeira, macieira etc.; nada de semelhante acontece com freixo, eucalipto etc.
(Saussure, CLG, 2a. Parte, 6, §3).

A motivação relativa está na base da noção de morfema como desenvolvida pelo estruturalismo ao longo do século XX: as palavras estruturalmente complexas de uma língua, como pereira (mas não palavras primitivas, como pera), podem ser decompostas em unidades de forma e de conteúdo, reconhecíveis em outras palavras da mesma língua.

O CLG discute se as onomatopeias fugiriam ao princípio da arbitrariedade. As onomatopeias (isto é, palavras cujos sons evocam sons do mundo biossocial) têm certo grau de arbitrariedade. Como notaria outro linguista famoso no século XX, Charles Hockett (1916-2000), um sino faz ding-dong em inglês; em alemão, bim-bam (Hockett,1958: 298). E podemos acrescentar: em português, blim blom.

Podemos não reconhecer uma sequência sonora que, em princípio, procura evocar algo se não conhecemos a língua em que essa evocação se apresenta. Se não sei latim, os exemplos em Prisciano (Institutiones grammaticae, I, De voce – KEIL,II.5-6 ) coax e cra não evocam coisa alguma. Tais palavras procuram imitar as vozes de que animais? Em outras palavras: as onomatopeias não são imitações fiéis (naturais ou icônicas nesse sentido), mas expressões fonemizadas (Lenneberg, [1964] 1971: 64), porque dependem da fonologia de cada língua.


FLORES, Valdir do Nascimento. 2022, A Linguística Geral de Ferdinand de Saussure. São Paulo: Contexto.

HOCKETT, Charles F. 1958.  A course in modern linguistics. New York: Macmillan. 

LENNEBERG, Eric H. 1964.  A capacidade de aquisição da linguagem. Trad. Miriam Lemle. In: Coelho, Marta; Lemle, Miriam & Leite, Yonne, org. Novas perspectivas linguísticas.  Petrópolis: Vozes, 1971. p. 55-92.

PRISCIANO. Institutiones grammaticae. Ed. H. Keil. Grammatici Latini. Leipzig: Teubner. 1855. v. 2.

SAUSSURE, Ferdinand de. [1922]. Curso de Linguística Geral, organizado por Charles Bally e Albert Sechehaye com a colaboração de Albert Riedilinger. Trad. de A. Chelini, J. P. Paes e I. Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1972.

SAUSSURE, Ferdinand de. [1922]. Curso de Linguística Geral, organizado por Charles Bally e Albert Sechehaye com a colaboração de Albert Riedilinger. Apresentação Carlos Alberto Faraco; Trad. notas e posfácio Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2021.


Comecei a postar neste blogue, ainda em 2020, pequenos textos escritos primariamente para as minhas turmas de Linguística I, que em geral concentram alunos dos cursos de Grego, Latim, Árabe, Hebraico, Japonês e Russo. São, por conseguinte, textos voltados para um aluno recém-saído do Ensino Médio, iniciante na Linguística. As citações nas línguas dos cursos desses estudantes, quando presentes, são propositais.

Esta postagem é parte do material para minhas turmas de Fundamentos da Linguística/ Linguística 1 e, como tal, se junta ao livro Uma viagem com a linguística, com acesso aberto nos formatos pdf e epub em https://linguisticamcarlotarosa.wordpress.com/sobre-2/  e aos materiais na aba “Protegido – Acesso Restrito – Graduação” neste site, cuja senha de acesso é divulgada na primeira aula do período.



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