Uma proposta de alfabeto manual do século oitavo

Maria Carlota Rosa – UFRJ – Linguística I/ Linguagem e língua – 2023-1

Da Antiguidade e do início da Idade Média sobreviveram diversos testemunhos de que o uso das mãos para expressar números e para cálculos mais complexos do que aquilo que atualmente denominamos contar nos dedos era prática bastante conhecida. Williams & Williams (1995) arrolam grande número de autores que mencionam tal conhecimento.

Ao tratar das “outras artes em que os meninos devem ser instruídos”, Quintiliano (I. X. 35) demonstrava que a dificuldade em fazer contas com os dedos ou a hesitação no emprego do gesto adequado marcava o indivíduo como “inculto” (“in quibus actor, non dico, si circa summas trepidat, sed si digitorum saltem incerto aut indecoro gestu a computatione dissentiti, iudicatur indoctus” – ‘neles é tido por inculto o advogado, não digo se tenha dúvida a respeito de somas, mas caso divirja em algum cálculo, ou por um gesto incerto e desonroso de fazer contas com os dedos’ – tradução de Bruno Bassetto ).

Os números podiam ir muito além de 10: era possível, por exemplo, indicar 500 com a flexão do polegar de uma das mãos (“numerum quingentorum flexo pollice” – ‘o número quinhentos com aquele do polegar curvado’ – Quintiliano I.XI.117 – tradução de Bruno Bassetto).

Certamente a mão para 500 não seria qualquer mão, mas a direita, como notou uma das fontes a que Williams & Williams (1995) remetem: Santo Agostinho (Sermones 175.1, apud Williams & Williams, 1995: 597). Segundo Santo Agostinho, “Quid est, ad nonaginta novem pertinent? In sinistra sunt, non in dextera. Nonaginta enim et novem in sinistra numerantur: unum adde, ad dexteram transitur.” – ‘O que é próprio a 99? Estão na esquerda, não na direita. Porque 99 é contado na esquerda; some um e se passa para a direita’).

Na direita ficavam de 100 a 9.999. Números maiores precisavam das mãos e da localização: peito, estômago, coxas; para um milhão, o maior número nesse sistema, juntavam-se as mãos com os dedos entrelaçados (Bruce, 2007: 57).

Duas fontes medievais detalharam esse sistema. Uma delas é um trabalho anônimo, Romana computatio (c. 688), um catálogo de 1 a 1.000.000 (Bruce, 2007: 57). Com base nele, no século seguinte (c. 725), São Beda escreveria a parte inicial de De temporum ratione, parte de sua discussão sobre o cálculo da data em que cairia a Páscoa a cada ano. O nome de Beda, ou Venerável Beda (?672-731) é uma constante nos panoramas sobre os estudos gramaticais na Idade Média. Sua obra, porém, se estende por diferentes áreas.

Números de 1 a 99
(extraído de Turner, 1951)

É justamente Beda que propõe utilizar esse sistema numérico como um alfabeto manual, que poderia ser útil, por exemplo, como meio de avisar um amigo rodeado de inimigos para que tivesse cautela (caute age): cada letra equivaleria ao número de sua posição na ordem alfabética:

“Por exemplo, se deseja avisar um amigo que está entre inimigos que aja com cautela mostra os dedos para 3, 1 e 20 [i. e., cau]; 19 e 5 [i. e., te] e 1,7 e 5 [i. e., age]; nesta ordem as letras significam tenha cuidado‘.

[Verbi gratia, si amicum inter insidiatores positum ut caute se agat admonere desideras, iii, et i, et xx, et xix, et v, et i, et vii, et v, digitis ostende; huius namque ordinis literae, ‘caute age,’ significant.’’ Apud Bruce, 2007: 59n22).

A correspondência entre letras e uma posição numérica não era nova; a ideia de uso dessa relação para a comunicação sem o uso da voz é que parece ter sido inovadora. Embora desajeitada.


Referências

BRUCE, Scott G. 2007. Silence and sign language in medieval monasticism: The cluniac tradition c. 900-1200. Cambridge: Cambridge University Press.

QUINTILIANO. Instituição oratória. Ed. em latim e português. Trad., apresent. e notas Bruno Fregni Basseto. Campinas. Ed. Unicamp. 2015-2016.

TURNER, J. Hilton. 1951. Roman Elementary Mathematics the Operations. The Classical Journal, 47 (2): 63-74+106-108. Nov., 1951.

WILLIAMS, Burma P. & WILLIAMS, Richard S. 1995. Finger Numbers in the Greco-Roman World and the Early Middle Ages. Isis, 86 (4): 587-608.


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Há tantos anos trabalhando com as turmas de calouros — isto é, alunos recém-saídos do Ensino Médio, iniciantes em linguística e na universidade —, decidi produzir e reunir pequenos textos que pudessem vir a aumentar o interesse desses jovens por linguística. Meu objetivo é, de um lado,  demonstrar que nosso trabalho é bem mais interessante do que a ideia generalizada de que apenas procuramos (ou deveríamos procurar) onde estão os erros numa frase — isto é, demonstrar que nosso trabalho não é (nem deveria ser) o reforço  para  o reducionismo de um mundo intolerante com a variação linguística; de outro,  aproveitar as expectativas positivas  em relação ao curso escolhido que se inicia. É essa a ideia do Meu Magazine de Linguística. Todos os textos estão reunidos em https://linguisticamcarlotarosa.wordpress.com/meu-magazine-de-linguistica/ .


Esta postagem é parte do material para minhas turmas de Fundamentos da Linguística/ Linguística 1 e, como tal, se junta ao livro Uma viagem com a linguística, com acesso aberto nos formatos pdf e epub em https://linguisticamcarlotarosa.wordpress.com/sobre-2/ e aos materiais na aba “Protegido – Acesso Restrito – Graduação” neste site, cuja senha de acesso é divulgada na primeira aula do período.



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