E o Rio de Janeiro deixava, por lei, de falar português

Imagem: A Câmara de Vereadores do Distrito Federal, atualmente
Palácio Pedro Ernesto.
Foto: Augusto Malta (1864–1957) em 1928.
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Pal%C3%A1cio_Pedro_Ernesto,_atual_C%C3%A2mara_Municipal_do_Rio_de_Janeiro_%28002095RJ001033%29.jpg#globalusage

Em 1935 o Rio de Janeiro ainda era o Distrito Federal — isto é, ainda era a sede do governo brasileiro. Ganhara, porém, com a Constituinte de 1934, autonomia política e administrativa e, com isso, o direito a eleger por voto direto os 24 representantes que comporiam a Câmara Municipal do Distrito Federal que, por sua vez elegeriam o Prefeito.

Um dos temas a que a primeira legislatura da Câmara Municipal se dedicou foi determinar a língua que se falava no Brasil e o nome que receberia no Distrito Federal. Surgia com o Projeto 62 de 1935, de autoria do vereador Frederico Trotta (1899-1980), que propunha  que “Os livros didaticos, relativos ao ensino da lingua patria, só serão adoptados nas escolas primarias e secundarias do Districto Federal quando denominarem de Brasileira, a lingua falada e escripta no Brasil“. Ficariam extintas também as cadeiras de Português ou Língua Portuguesa nas escolas municipais, substituídas por Língua Brasileira.

A proposta levada ao Legislativo Municipal era sustentada por um conjunto de considerandos que giravam em torno do argumento de que o português deixara de ser falado no Brasil: o brasileiro é uma evolução do português como o português fora uma evolução do latim que, como o grego, “é lingua morta” (Frederico Trotta, Ata da 49ª Sessão Ordinária da Câmara Municipal do Distrito Federal). Demonstrava que o brasileiro era uma outra língua o vocabulário empregado no Brasil, com as “dezenas de milhares de vocabulos” “de varias origens incorporados ao nosso idioma notadamente o da lingua tupy guarany“. Outra questão levantada nos considerandos dizia respeito a não existirem gramáticas que descrevam a língua falada em países da América Hispânica intituladas gramática do espanhol, nem gramática do inglês para as obras que descrevem o inglês transplantado para os EUA.

Houve quem defendesse em plenário (mas não na votação) a manutenção de língua portuguesa:

A lingua portugueza, sem duvida, foi durante largo tempo tanto do Brasil como de Portugal; eramos condominos nessa lingua em quantidades iguais. Hoje, sem a menor duvida, essa lingua é dois terços mais do Brasil do que de Portugal. [….] Consequentemente, não foi o Brasil que adquiriu a lingua brasileira, foi Portugal que veio, pouco a pouco, perdendo a propriedade principal da lingua portugueza. Hoje ella é muito mais do Brasil que de Portugal, mas é entretanto ainda a lingua portugueza. O facto de alguma cousa mudar de proprietario não a faz mudar de nome” (vereador Heitor Beltrão, Ata da 49ª Sessão Ordinária da Câmara Municipal do Distrito Federal).

O argumento mais importante, porém, não estava no Projeto, mas nos debates — e não era linguístico: “não recuso meu voto ao projecto [….], devido ao facto de recear que pareça uma falta de patriotismo negar que no Brasil se fala a lingua brasileira” (vereador Jansen Müller, Ata da 49ª Sessão Ordinária da Câmara Municipal do Distrito Federal).

A discussão do Projeto matizou, porém, o tom ufanístico do reconhecimento das diferenças entre o português de Portugal e o do Brasil:

hoje quando leio samba acho muito interessante, porém não quero ver o samba transformado em língua nacional, não quero ver aquella linguagem adoptada no recesso da minha intimidade, porque, então [….] vai o terra-terra“. “Essa meia-lingua [….] tende ao desapparecimento, ou então estamos na mais deploravel das decadencias” (vereador Jansen Müller, Ata da 49ª Sessão Ordinária da Câmara Municipal do Distrito Federal).

E os argumentos linguísticos de fato?

Joaquim Mattoso Camara Jr. (1904-1970) analisou os sete considerandos que embasavam o Projeto 62 de 1935. Fez isso no artigo Língua brasileira do Distrito Federal, publicado no Diário de Notícias do Rio de Janeiro quatro dias antes da aprovação do Projeto no Legislativo Municipal. Demonstrava que todos os considerandos tinham erros. Enviaria o artigo ao vereador Romero Zander (1894-1947), que leria da tribuna esse artigo de Mattoso Camara. Foi dele o único voto contrário à aprovação do Projeto em 18 de julho de 1935.

Embora seu primeiro argumento não fosse linguístico — a Câmara Municipal não teria competência para legislar sobre o tema — Mattoso fundamentou sua crítica com Ferdinand de Saussure, Antoine Meillet, Antenor Nascentes, João Ribeiro, rejeitando por completo a sustentação do projeto de lei. Em vão.

Nas palavras do vereador Heitor Beltrão (1889-1955), “não se póde tratar desta materia do ponto de vista meramente do raciocinio” ou seria necessário dar razão “á bellissima carta, eminentemente erudita, que acaba de ser lida, neste recinto, pelo nosso collega, Sr. Vereador Romero Zander” (In Rosa, não publicado). O Projeto teria a aprovação quase unânime do colegiado, seguindo, então para a sanção do Executivo municipal.

  • O Projeto receberia o veto do Prefeito Pedro Ernesto (1884-1942).
  • A Câmara Municipal derrubaria o veto.
  • A nova lei entraria em vigor em janeiro de 1936.
  • Em 1937 o Presidente da República Getúlio Vargas (1882-1954) dissolvia a Câmara Municipal e interditava o prédio onde ela funcionava (atualmente denominado Palácio Pedro Ernesto).
  • A Constituição de 1946 determinaria que o governo iria nomear “Comissão de professores, escritores e jornalistas, que opine sobre a denominação do idioma nacional” .
  • Essa Comissão, com a relatoria de Sousa da Silveira (1883-1967), Professor Catedrático da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, determinaria que “o idioma nacional do Brasil é a Língua Portuguesa“.

ROSA, Maria Carlota (não publicado). Mattoso Camara num episódio da política carioca: a “Língua brasileira do Distrito Federal”.


Há tantos anos trabalhando com as turmas de calouros — isto é, alunos recém-saídos do Ensino Médio, iniciantes em linguística e na universidade —, decidi produzir e reunir pequenos textos que pudessem vir a aumentar o interesse desses jovens por linguística. Meu objetivo é, de um lado,  demonstrar que nosso trabalho é bem mais interessante do que a ideia generalizada de que apenas procuramos (ou deveríamos procurar) onde estão os erros numa frase — isto é, demonstrar que nosso trabalho não é (nem deveria ser) o reforço  para  o reducionismo de um mundo intolerante com a variação linguística; de outro,  aproveitar as expectativas positivas  em relação ao curso escolhido que se inicia. É essa a ideia do Meu Magazine de Linguística. Todos os textos estão reunidos em https://linguisticamcarlotarosa.wordpress.com/meu-magazine-de-linguistica/ .

Esta postagem é parte do material para minhas turmas de Fundamentos da Linguística/ Linguística I e, como tal, se junta ao livro Uma viagem com a linguística, com acesso aberto nos formatos pdf e epub em https://linguisticamcarlotarosa.wordpress.com/sobre-2/  e aos materiais na aba “Protegido – Acesso Restrito – Graduação” neste site, cuja senha de acesso é divulgada na primeira aula do período.



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