Nada mais constrangedor para o currículo de um pesquisador que ter uma coleção de artigos retratados.
Assim Diniz & Terra (2014: 117) fazem referência ao efeito da retratação de um trabalho no currículo de um pesquisador.
Como no seu emprego mais comum, a palavra retratação significa uma declaração de erro, um desmentido em relação a algo dito anteriormente. No sentido especializado com que é empregada no mundo acadêmico, é uma declaração de erro grave num trabalho já publicado.
A retratação é um mecanismo para corrigir a literatura e alertar os leitores sobre publicações que contêm dados tão falhos ou errados que não se pode confiar em suas descobertas e conclusões. Dados não confiáveis podem resultar de simples erro ou de má conduta na pesquisa.
COPE/Committee on Publication Ethics. Retraction guidelines.
O trabalho tem erro grave
O erro acidental, sem má fé, pode ocorrer por várias razões, que podem incluir a inabilidade na análise dos resultados ou mesmo a má qualidade do equipamento empregado na coleta de dados (não se trata aqui do erro que não resulta de engano; ver, por exemplo, Practices of Science: Scientific Error).
Quando um autor ou grupo de autores se dá conta de um erro nos resultados ou na sua interpretação em um artigo já publicado, é de sua responsabilidade procurar o editor do periódico em questão e submeter uma retratação. Tal ato evidencia um forte senso de rigor e ética, uma vez que as consequências de uma retratação para o pesquisador, sua instituição e para o próprio periódico não são de todo positivas. De fato, por temer tais consequências muitos preferem abster-se e deixar o artigo cair no esquecimento. Contudo, quando se trata de admitir um erro honesto, o ato de retratar-se deveria dar crédito ao autor. (Nassi-Calò, 2014)
Face à carga negativa associada à retratação para todos os envolvidos no processo, alguns editores têm optado por apresentar uma “nota de correção” do trabalho, como observa Hilda Bastian, e não uma retratação (in Brainard & You, 2018), nos casos de erros.
Entende-se por má conduta científica toda conduta de um pesquisador que, por intenção ou negligência, transgrida os valores e princípios que definem a integridade ética da pesquisa científica e das relações entre pesquisadores [….]. A má conduta científica não se confunde com o erro científico cometido de boa fé nem com divergências honestas em matéria científica. (FAPESP, 2011)
A má conduta, segundo Nassi-Caló (2014), vem sendo a principal causa de retratação, afirmação confirmada no conjunto de histórias na Science lançado no último dia 25 de outubro em conjunto com a base de dados da Retraction Watch. Entre as condutas condenáveis mais frequentes nos dados dessa base surgem o plágio e o auto-plágio, as imagens falsas, processo de revisão por pares comprometido pela presença do autor como parecerista de seu trabalho e ainda autoria falsa e, em trabalho com seres humanos, a falta de aprovação de um CEP/ Comitê de Ética em Pesquisa.
Uma retratação pode levar a outras retratações, porque uma vez detectado algo tão grave que leve à reprovação pública de um trabalho, em especial nos casos de má conduta, as publicações prévias daquele(s) autor(es) podem ser reavaliadas. No Japão, por exemplo, a reavaliação pode recuar até a tese, como se depreende do comentário do Prof. Iekuni Ichikawa:
From my extensive personal experience serving as a member of misconduct investigation committees, both funding agencies and institutions mandate that committees investigate not just the papers initially flagged as potentially problematic, but that investigators often look deep into publications during early stages of a research career. In the case of Haruko Obokata of the STAP cell scandal, investigations led to the revoking of her PhD based on plagiarism found in her thesis. (Retraction Watcht)
A má conduta na pesquisa pode-se dar de modos diferentes e em estágios diferentes do trabalho. Esses modos foram resumidos na sigla FFP, iniciais das palavras Fabricação, Falsificação e Plágio. A má conduta não é um problema apenas do autor de um artigo: ela chama à responsabilidade também sua instituição.
Este tema ainda é relativamente novo no meio acadêmico brasileiro. Mas as mudanças nesse cenário estão ganhando velocidade.
Um cenário em mudança no Brasil
Num artigo de 2007, Sônia Vasconcelos citava o editor de Cadernos de Saúde Pública, Carlos Coimbra, que, num editorial sobre plágio ainda na década de 1990, afirmava: “no Brasil pouco se fala sobre plágio em ciência. Isto certamente decorre menos da ausência do problema no país do que da falta de iniciativas para aprofundar essa discussão.” Esse quadro começaria a mudar cerca de uma década e meia mais tarde, com integridade e ética em pesquisa ganhando lugar na agenda do MEC e das agências de fomento.
- Em dezembro de 2010 a COPPE-UFRJ, associada ao IBqM/UFRJ, promoveu o I Brazilian Meeting on Research Integrity, Science and Publication Ethics (I BRISPE).
- Em 2011 o Brasil assistiu à publicação de documentos sobre boas práticas em pesquisa:
- em janeiro, seguindo orientações da OAB, a CAPES/Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior publicou um documento pedindo o combate ao plágio;
- em setembro e outubro de 2011 foi a vez de duas agências de fomento:
Num âmbito mais restrito, que diz respeito aos procedimentos
que podem levar algum nível de risco aos participantes
numa pesquisa com seres humanos,
em 1988 o Conselho Nacional de Saúde/CNS
propunha que fossem criados comitês de ética:
em "toda instituição de saúde credenciada
pelo Conselho Nacional de Saúde na qual se realize
pesquisa deverá existir: I – Comitê de Ética,
caso se realize pesquisas em seres humanos"
(Resolução N° 01/88 Art. 83).
O CNS aprovaria em 1996 outro documento, a Resolução N°196/96,
com diretrizes e normas regulamentadoras
de pesquisas envolvendo seres humanos, revisada pela
Resolução Nº 466/12 .
Em mudança na UFRJ
- No âmbito da Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ, em agosto de 2012, ainda na gestão da Professora Débora Foguel como Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa, começava a tomar forma a CTEP/ Câmara Técnica de Ética em Pesquisa, que seria aprovada cerca de um ano depois, em 2013 (Portaria nº 8645 , de 30 de julho de 2013) e instalada pelo Reitor Carlos Levi em 24 de agosto de 2013.
- Atualmente a CTEP é coordenada pela Prof. Sonia Vasconcelos (IBqM).
E o que faz a CTEP-UFRJ?
O objetivo da CTEP é promover o desenvolvimento da ética
em todas as etapas da pesquisa realizada na UFRJ
desde a elaboração do projeto, a captação dos recursos,
condução, comunicação e impacto sócio-ambiental,
propondo políticas e ações educativas
Neste panorama global, a responsabilização nas atividades científicas e a confiança pública na ciência são hoje consideradas aspectos cruciais no âmbito da governança em ciência, tecnologia e inovação (C,T&I). [….] Do ponto de vista institucional, crescentes esforços têm sido empregados por instituições de diversos países para estimular a integridade acadêmica, bem como para identificar e prevenir a má conduta na pesquisa. Problemas como a falsificação/fabricação de resultados e o plágio de idéias, dados e de qualquer produção intelectual alheia, como a cópia parcial ou total de textos, têm sido foco de atenção. Entretanto, a dimensão atual desse tema é extremamente ampla [….]. No contexto educacional, os impactos da discussão mundial sobre integridade científica estão diretamente associados à formação do jovem pesquisador e à qualidade da pesquisa comunicada aos pares e à sociedade.
(Extraído de CTEP. Integridade em Pesquisa)
Uma instituição de ensino e pesquisa precisa de estar preparada
para lidar com os conflitos que infelizmente ocorrem
e que envolvem a pesquisa.
Sua administração precisa de ter,
por exemplo, uma política para lidar com denúncias de má conduta.
Um conflito sobre quem tem direito aos dados coletados,
uma acusação de roubo de projeto, de artigo,
uma denúncia de que uma tese copia um ou mais trabalhos
são problemas que podem tomar vulto, ultrapassar
os muros do laboratório, do programa, os da Unidade e chegar
ao Conselho de Ensino para Graduados/CEPG, no caso da UFRJ.
A CTEP-UFRJ é o escritório de assessoria especializada do CEPG.
Mas ... um conflito pode ultrapassar os muros da universidade,
apesar de instâncias como a CTEP.
Um exemplo famoso em que as consequências
ultrapassaram em muito o laboratório ficou conhecido
como o Caso Baltimore ou Caso Thereza Imanishi-Kari e foi tema
de longo artigo de Daniel J.Kleves para The New Yorker.
Esse caso se arrastou entre 1986 e 1996, em sequência
à publicação,em 1986, de artigo na revista Cell
em que o Nobel de Medicina David Baltimore era um dos autores.
A biomédica nascida em Indaiatuba, São Paulo,
Thereza Imanishi-Kari, então no MIT, coautora no artigo,
foi denunciada por falsificação de dados
pela então pós-doutoranda Margot O'Toole,
que trabalhavam em seu laboratório.
Insatisfeita com as soluções intra-muros,
que não viram má conduta na supervisora, O'Toole conseguiu fazer
o caso chegar a um congressista que tentava diminuir
o montante das verbas de pesquisa nos EUA e que acionou
o Serviço Secreto contra Imanishi-Kari.
Dez anos após a denúncia que deu início a um processo kafkiano
(porque durante quase todo o processo a acusada
não podia tomar ciência das 19 acusações
movidas contra ela), Thereza Imanishi-Kari foi inocentada.
Na ficção é mais fácil.
Quem acompanhou o seriado de televisão Dr. House*
pôde acompanhar o conflito entre a ética Dra. Allison Cameron
e o colega Dr. Eric Foreman.
Ele rouba um artigo da colega de equipe e o publica antes dela.
Naquela bagunça de hospital todos sabem da má conduta,
que passa a afetar o trato com os pacientes. Mas não há
qualquer instância a que recorrer.
À beira da morte e depois de enterrar propositadamente
uma agulha infectada na perna da Dra. Cameron, o Dr. Foreman
confessa o roubo do artigo (o que até então negara)
e lhe pede desculpas. Ele não morre e ela o perdoa.
Funciona na ficção,
onde nem um único advogado entrou na história.
* House MD.2005. Euphoria - Part 2 (S 02, Ep. 21).
Plágio, fabricação e falsificação de dados não podem mais ser colocados em esquecimento no meio acadêmico. Comentários como aqueles a seguir, extraídos de Vasconcelos et alii (2009), talvez não surgissem mais nos resultados de um estudo, passados 10 anos (ênfase adicionada):
A student asked me to review her thesis. Sure, I was very happy to do so…It came to a point where I thought” I know this style… “And I went on reading…five, six pages from my own thesis! Had she copied that from someone else’s writing?…I’ve never met a situation like that; the really strange thing is that I talked to her thesis advisor, who considered the whole issue trivial …”
“I don’t care…a paragraph from my thesis… [a student copying] not the whole thesis…but some paragraphs, I don’t care…Materials and methods? [Students] always copy and paste from other students…”
Referências
I Brazilian Meeting on Research Integrity, Science and Publication Ethics/ I BRISPE. http://www.ibrispe.coppe.ufrj.br/port.php
CTEP/ Câmara Técnica de Ética em Pesquisa. Histórico. http://cpro16197.publiccloud.com.br/~ctep/index.php/ctep/historico
CTEP/ Câmara Técnica de Ética em Pesquisa. Diretrizes sobre integridade acadêmica. http://cpro16197.publiccloud.com.br/~ctep/index.php/noticias/97-diretrizes-sobre-integridade-academica
CTEP/ Câmara Técnica de Ética em Pesquisa. Integridade em Pequisa. http://cpro16197.publiccloud.com.br/~ctep/index.php/subcamaras/integridade-em-pesquisa
Diniz, Débora & Terra, Ana. 2014. Plágio: palavras escondidas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.
FAPESP/ Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Código de boas práticas científicas. http://www.fapesp.br/boaspraticas/codigo_050911.pdf
HOUSE M.D. 2005. 2ª temporada. Direção: Bryan Singer. Intérpretes: Hugh Laurie, Robert Sean Leonard, Lisa Edelstein, Omar Epps, Jennifer Morrison, Jesse Spencer. Fotografia: Roy H. Wagner.[s.l.]: Universal Studios, 2006. 6 DVDs (1051 min), fullscreen, color.
Ichikawa, Iekuni. 2018. When researchers from a particular country dominate retraction statistics, what does it mean? Retraction Watcht, 24Out2018. http://retractionwatch.com/2018/10/24/when-researchers-from-a-particular-country-figure-prominently-in-retraction-statistics-what-does-it-mean/
Kleves, Daniel J. 1996. The assault on David Baltimore. The New Yorker, 27Maio1996. http://web.mit.edu/chemistryrcr/Downloads/Baltimore.pdf
NASSI-CALÒ, Lilian. Os desafios da retratação: passar a literatura a limpo pode ser difícil [online]. SciELO em Perspectiva, 2014 https://blog.scielo.org/blog/2014/10/10/os-desafios-da-retratacao-passar-a-literatura-a-limpo-pode-ser-dificil/
OAB/ Ordem dos Advogados do Brasil/Comissão Nacional de Relações Institucionais do Conselho Federal/ Ricardo Bacelar Paiva. 2010. Proposição 2010.19.07379-01 – Proposta de adoção de medidas para prevenção do plágio nas Instituições de Ensino e do comércio ilegal de monografias.
Practices of Science: Scientific Error. In: Exploring Our Fluid Earth. https://manoa.hawaii.edu/exploringourfluidearth/physical/world-ocean/map-distortion/practices-science-scientific-error
Vasconcelos, Sônia M. R. 2007. O plágio na comunidade científica:questões culturais e linguístcas. Ciência e Cultura, 59 (3): 4-5 Jul/Set. 2007. http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v59n3/a02v59n3.pdf
Vasconcelos, Sônia M. R.; Leta,Jacqueline; Costa, Lídia; Pinto, André Sorenson, Martha M. 2009. Discussing plagiarism in Latin American science. Brazilian researchers begin to address an ethical issue. EMBO Reports, 10(7), 677–682. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2727439/
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