Todo mundo fala um dialeto (mas não gosto do seu): as atitudes dos falantes

Maria Carlota Rosa – UFRJ – Linguística I/Linguagem e língua – 2023-2

Como já afirmava Joaquim Mattoso Camara Jr. em Estrutura da língua portuguesa, nenhuma língua é um bloco monolítico (ELP II 6): em outras palavras, toda língua tem variação. É em razão da variação que, ao ouvirmos alguém que fala a nossa língua, podemos associar esse falante a uma região, a um grupo social.

Para a distinção entre língua e dialeto remeto o leitor para Língua e dialeto, postado aqui em 04/12/2020 (https://linguisticamcarlotarosa.wordpress.com/2020/12/04/1-4-lingua-e-dialeto/). Para os termos variedade, dialeto e sotaque ver a postagem de 07/12/2020 https://linguisticamcarlotarosa.wordpress.com/2020/12/07/1-6-ainda-os-dialetos/

A reação do ouvinte a uma variedade diferente da sua pode ser uma atitude negativa ou de aceitação. A parte negativa é o que chamamos preconceito linguístico.

Mas a principal fonte de preconceito linguístico, no Brasil, está na comparação que as pessoas da classe média urbana das regiões mais desenvolvidas fazem entre seu modo de falar e o modo de falar dos indivíduos de outras classes sociais e das outras regiões. Esse preconceito se vale de dois rótulos: o “errado” e o “feio” que, mesmo sem nenhum fundamento real, já se solidificaram como estereótipos. Quando analisado de perto, o preconceito linguístico deixa claro que o que está em jogo não é a língua, pois o modo de falar é apenas um pretexto para discriminar um indivíduo ou um grupo social por suas características socioculturais e socioeconômicas: gênero, raça, classe social, grau de instrução, nível de renda etc.” (Bagno, s.d.)

Em “Atitudes linguísticas com relação a sotaques regionais no Brasil“, Melo (2010) refere a reação agressiva de alunos de uma escola em Brasília ao ouvirem um colega de turma, carioca, dizer qualquer coisa em sala:

O traço estereotipado mais saliente do carioca é o /š/ (fricativa palatal em posição final absoluta ou diante de consoante surda). Por várias vezes registramos o estigma desse /š/ entre escolares adolescentes de Brasília. O desagrado pela pronúncia carioca foi manifestado diversas vezes por meio de risos, vaias e posteriores imitações da pronúncia em tom de deboche. Tal fato nos despertou a curiosidade e procuramos seguir o comportamento linguístico de um jovem recém-chegado do Rio de Janeiro. Sempre que o jovem se dirigia ao professor e ou aos colegas em voz alta, a censura a sua pronúncia se evidenciava. Notamos que, com o passar do tempo, o jovem tendia a apagar esse traço estigmatizado. Quando chegou ao fim do período escolar, nosso jovem já havia se acomodado ao grupo” (Melo, 2010: 59-60).

Em outras palavras: preconceito linguístico — e não só — concretizado em bullying continuado e permitido em ambiente escolar, justificado pelos haters com afirmativas como “Acho que ele quer esnobar”, “Quer ser diferente dos outros “.

Atitudes linguísticas de nordestinos em São Paulo (Alves, 1979) inverteu o foco da pesquisa, buscando o ponto de vista daquele que sofre o preconceito linguístico. Alves apontou evidências de que os migrantes nordestinos de sua amostra que tinham baixo nível sócio-econômico-cultural não tinham atitude positiva em relação à variedade nativa, mas tinham “atitudes altamente positivas [….] sobre o falar de São Paulo”, bem como “o desejo [….] de falar igual aos paulistas”. Observou ainda “o fato de os informantes com mais de dois anos em São Paulo considerarem que ‘falam quase como paulistas’ e apresentarem [….] comparativamente aos recém-chegados, modificações na fala, onde muitas vezes se observam hipercorreções” (Alves, 1979: 165). Segundo a autora, “quando voltam ao nordeste para visitar parentes e amigos [….] voltam tentando imitar o falar paulista” (Alves, 1979: 167-168).

os indivíduos desencadeiam atitudes movidas pelas crenças linguísticas impregnadas, ao longo do tempo pela sociedade, na língua e nos dialetos, manifestando, assim, atitudes de rejeição ou de aceitação, de preconceito ou prestígio, de correção ou de erro, dentre outras.” (Silva & Aguilera, 2014: 705)

ALVES, Maria Isolete Pacheco Menezes. 1979. Atitudes linguísticas de nordestinos em São Paulo (abordagem prévia). Campinas: Unicamp. Dissertação de Mestrado em Linguística. https://repositorio.unicamp.br/Busca/Download?codigoArquivo=494129

BAGNO, Marcos. s.d. Preconceito linguístico. Glossário CEALE: termos de alfabetização, leitura e escrita para educadores. Belo Horizonte: CEALE/Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita | Faculdade de Educação da UFMG. https://www.ceale.fae.ufmg.br/glossarioceale/verbetes/preconceito-linguistico

CAMARA Jr., J. Mattoso. 1970. Estrutura da língua portuguesa. Edição, estabelecimento de texto, introdução e notas de Emílio Gozze Pagotto, Maria Cristina Figueiredo Silva e Manoel Mourivaldo Santiago-Almeida. Petrópolis: Vozes, 2019.

MELO, Djalma Cavalcante. 2010. Atitudes linguísticas com relação a sotaques regionais no Brasil. In: BORTONI-RICARDO,Stella Maris; VELLASCO, Ana Maria de Moraes & FREITAS, Vera Aparecida (orgs.). 2010. O falar candango: análise sociolinguística dos processos de difusão e focalização dialetais. Brasília: Editora UnB.

SILVA, Hélen Cristina da & AGUILERA,Vanderci de Andrade. 2014. O poder de uma diferença: um estudo sobre crenças e atitudes linguísticas. Alfa, 58 (3): 703-723. https://www.scielo.br/j/alfa/a/kymhBpzQ37Pn6JWZJqZbJFz/?lang=pt


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Todo mundo fala um dialeto: as marcas de uma região geográfica

Como se aprenderia a falar grego? No século VI da nossa era Olimpiodoro (citado em Vassilaki, 2007: 1121) aponta dois modos. Um deles era aquele em que a comunidade linguística é o professor [….]. O outro modo ficava a cargo do professor de gramática.

Escrevi esse trecho anteriormente neste blogue. Há tantos de séculos de distância um autor apontava dois modos de se aprender uma língua: no ambiente em que ela é falada, sem ensino formal; ou no ambiente escolar.

Aprendemos nossa língua materna — português no caso — do primeiro modo. Mas que português? Numa casa carioca o português é diferente do português numa casa lisboeta, ou numa casa manauara…

Para os linguistas, dialeto não tem conotações pejorativas. Na linguística, dialetos são “formas mutuamente inteligíveis de uma língua que diferem entre si de modo sistemático” (Fromkin, Rodman, Hyams, 2014: 279; 281).

Alguém que nasceu e viveu no Rio de Janeiro será um falante do dialeto carioca. E se a criança nascida no Rio de Janeiro, que vive no Rio de Janeiro, tivesse pais portugueses? Ouvir o português de Portugal em casa faria com que esse pequeno carioca falasse como eles, de modo diferente, portanto, dos demais cariocas que contactaria quando fora de casa?

A resposta é “NÃO”. Ela não pronunciará norte, por exemplo, como [‘nɔrt], como alguém de Lisboa, mas como [‘nɔxtʃi]. A melodia da frase dessa criança carioca também não será a mesma de um lisboeta.

Aqui Ferdinand de Saussure (Curso, 1a. Parte, cap. 2, § 2) nos vem à lembrança: os pais lisboetas falariam como em Lisboa no dia seguinte à sua chegada ao Rio de Janeiro; porém, no novo ambiente, não estarão isolados: “o tempo permitirá às forças sociais que atuam sobre ela [a língua – MCR] desenvolver seus efeitos“.

Esse pequeno carioca não terá uma pronúncia diferente de cariocas filhos de cariocas. As crianças rejeitam os traços fonéticos da fala dos pais que não condizem com o padrão mais geral da comunidade (Labov, 2014, comentado aqui anteriormente).

As marcas regionais estão na pronúncia, mas também no vocabulário (lembremos do exemplo do cafezinho e da bica) e na gramática (que criança carioca usaria uma mesóclise, por exemplo?).

Cabe chamar a atenção, porém, para o fato de que não há fronteiras delimitando onde acaba um dialeto e começa outro. Vale aqui o exemplo sempre usado da longa viagem por terra: vamos percebendo pequenas diferenças entre localidades vizinhas, mas o ponto inicial da viagem e o ponto final podem ser quase que mutuamente incompreensíveis.

Para os símbolos acima, empregados para as pronúncias de norte, veja-se o material da Prof. Thaïs Christófaro (UFMG) em http://fonologia.org/quadro_fonetico.php


Referências

  • FROMKIN, Victoria; RODMAN, Robert & HYAMS, Nina. An introduction to language. 10th ed. Boston: Wadsworth, Cengage Learning, 2014.
  • LABOV, William. 2014. The sociophonetic orientation of the language learner. In: CELATA, Chiara & CALAMAI, Silvia (eds.) Advances in Sociophonetics. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins. p.17-29.
  • SAUSSURE, Ferdinand de. [1916]. Curso de Linguística Geral, organizado por Charles Bally e Albert Sechehaye com a colaboração de Albert Riedilinger. Trad. de A. Chelini, J. P. Paes e I. Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1972.
  • SAUSSURE, Ferdinand de. [1916]. Curso de Linguística Geral, organizado por Charles Bally e Albert Sechehaye com a colaboração de Albert Riedilinger. Apresentação Carlos Alberto Faraco; Trad. notas e posfácio Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2021.
  • VASSILAKI, S. ἑλληνισμός. In: CHISTIDIS, A.-F. (ed.) A History of Ancient Greek: From the Beginnings to Late Antiquity. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p. 1118-1129.



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Sobre o conceito de dialeto quando tratamos da Grécia antiga

Maria Carlota Rosa – UFRJ – Linguística I/ Linguagem e língua + Breve história da linguística – 2023-1

Em linguística, “o termo dialeto significa uma variedade de uma determinada língua e, por conseguinte, uma língua pode ser compreendida como um conjunto de dialetos” (Rosa, 2022: 127). Quando focalizamos a Grécia antiga, de onde, em última análise, herdamos o português dialeto (gr. diálektos), estamos autorizados a dizer que o ático, por exemplo, era um dialeto de uma língua grega padrão?

Anna Morpurgo Davies (1937-2014), num texto de 1987, republicado em 2002, discute o significado de dialeto. Seu ponto de partida são os fatores não linguísticos que acabam por entrar na caracterização de conceitos como dialeto e língua (ver Língua e dialeto ). E quando o tema são os dialetos gregos no material referente aos séculos VIII ao III a.C.? Eles são dialetos de uma língua? De que língua?

O sentimento de que para os gregos havia uma mesma língua grega, não obstante tantas diferenças, foi afirmado por Antoine Meillet (1930: 75):

“Pour autant qu’on puisse s’en rendre compte avec les faits qu’on possède, les parlers grecs du Ve siècle av. J.-C. étaient bien différents les uns des autres. La graphie, qui est à peu près la même partout, dissimule beaucoup de différences de détail de la prononciation. La littérature, déjà répandue, tendait à unifier les tours de phrases et le vocabulaire. Néanmoins les inscriptions rédigées dans les parlers locaux, surtout les plus anciennes, offrent entre elles de fortes divergences : il devait être malaisé à des Hellènes appartenant à des cités différentes et parlant des dialectes différents, sinon de se comprendre en gros, du moins de s’entendre précisément. Mais les divergences n’étaient pas telles que les Hellènes aient jamais perdu le sentiment de parler une même langue. Au point de vue linguistique, le sens de I’unité hellénique n’a jamais disparu.”

[‘Tanto quanto se pode perceber com os fatos que se tem, os dialetos gregos do século V a.C. estavam bem diferentes uns dos outros. A grafia, que é quase a mesma em todos os lugares, dissimula muito das diferenças de detalhe da pronúncia. A literatura, já difundida, tendia a unificar os contornos das frases e o vocabulário. No entanto, as inscrições em falares locais, especialmente os mais antigos, mostram fortes diferenças entre eles: deve ter sido difícil para helenos pertencentes a cidades diferentes e falando dialetos diferentes, de se entenderem aproximadamente, e menos ainda com precisão. Mas as diferenças não eram tais que os helenos houvessem perdido o sentimento de falar a mesma língua. Do ponto de vista linguístico, a sensação da unidade helênica nunca desapareceu‘. – MCR]

Antes do período helenístico a escrita num dialeto estava mais relacionada ao gênero que à origem do autor: a poesia épica surgia em jônico; a poesia lírica (mas não a prosa), em eólico; a tragédia em ático (mas não no tocante ao coro, que se expressaria em dórico). Como notou Horta (1970: 56),

“o dialeto empregado numa obra não depende da região de onde é originário seu autor, mas sim do conteúdo das publicações, passando a caracterizar-lhes o gênero. [….] não nos surpreende, portanto, que autores como Hesíodo, por exemplo, nascido em Halicarnasso, mas vivendo na Beócia, se utilize da língua homérica, cujo dialeto fundamental é o jônico, nem que o poeta elegíaco Teógnis, natural de Mégara, em pleno domínio dórico, tenha respeitado a tradição escrevendo seus poemas em dialeto jônico, ao passo que Píndaro, nascido em Tebas na Beócia, tenha escrito seus maravilhosos epinícios, na mescla dialetal saturada de dorismos que é característica do lirismo coral na Grécia”.

Para Davies ([1987]2002: 157-158) a mudança de dialeto literário, quer na escrita, quer na recitação, deve ter contribuído para o sentimento de uma relação entre gregos que deixava de fora os não-gregos. Mas e na fala?

“Os sofistas sempre falavam em ático quando em Atenas? Os interlocutores de Sócrates sempre mudavam para o ático [….] no curso das discussões, mesmo se fossem, por exemplo, da Beócia?” (Davies, [1987] 2002: 158). Davies defende, tomando por base as comédias, que, sendo os dialetos mutuamente inteligíveis, seriam poucas as situações em que cada interlocutor mudava de variedade. E conclui:

“Não há evidência, antes do período helenístico, de uma língua padrão em uso na Grécia quer na literatura, quer na comunicação. Por outro lado, há evidências de um complexo padrão de mudança de dialeto (ao menos para fins literários) e de um conhecimento passivo extenso de diferentes dialetos. As formas linguísticas usadas diferem extensivamente de região para região, mas os padrões de uso e compreensão criam relações entre os diferentes dialetos e contribuem para delimitá-los como uma unidade que pode ser contrastada com as línguas não gregas”. (Davies, [1987] 2002: 161).

A partir do século V a.C. essa unidade está evidenciada no verbo hellenizein, ‘falar grego’. Quem fala grego tem uma língua; quem não fala grego, não; para estes havia um outro verbo: barbarizein.

“Em resumo: em algum momento, certamente bem antes do século V, os habitantes da Grécia [….] começaram a sentir que falavam e escreviam grego. Como tal, contudo, o grego não existia” (Davies, [1987] 2002: 168). Afinal, antes da koiné do período helenístico não havia uma língua comum.

Referências

DAVIES, Anna Morpurgo. 1987. The Greek notion of dialect. Verbum, 10: 7-28.

DAVIES, Anna Morpurgo. 1987. The Greek notion of dialect. In: HARRISON, Thomas (ed.). 2002. Greeks and Barbarians. Edinburgh: Edinburgh University Press. pp. 153-17.

HORTA, Guida Nedda Barata Parreiras. 1970. Os gregos e seu idioma: manual prático de Língua Grega Clássica e de
Cultura Helênica para uso dos Cursos Universitários de Letras
. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica.

MEILLET, Antoine. 1930. Aperçu d’une histoire de la langue grecque. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.

ROSA, Maria Carlota. 2022. Uma viagem com a linguística: um panorama para iniciantes. São Paulo: Pá de Palavra.



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